By Luciana Solano
(translated from Portuguese – original bellow)
Virgilio Gallery presents the exhibition “Fica, vai ter bolo!“ by artist Carolina Paz. The name derives from an expression that translates into “Stay, there will be cake!”. The expression is used, in Brazil, when a guest states he is to leave the party and the host tries to make him stay further, “until cake is served”. The exhibition shows Paz’s paintings from the last two years, as well as a collaborative artwork she proposed to twenty other people.
In 2017, Carolina Paz did paintings based on memories and affections awakened by words found in letters she received as part of her collaborative project “Desejo Motivo”. A year later, Paz defined parameters such as size and format, technique, and theme to establish a common ground among people from different social environments. The result is a single interpersonal artwork composed by twenty small format paintings. In this new project, Paz transfers the action of painting to artists and non artists who become accomplices in a shared subjective experiment. Paz also shares the exhibition space with them by creating dialogues between their paintings and her own.
Each collaborator’s personal reason for being part of this project include, willing to feel part of the artist’s proposition, dealing with unrealised wishes through the act of painting, or just being part of a social group. Each collaborator experienced feelings of gratitude, nostalgia, self knowledge, being able to freeze the past, and revive family moments, and being able to reformulate sad or incomplete remembrances.
The bigger formats were painted over the intimacy of bed linens, and seem to invite the viewer to explore its empty spaces while keeping us out of it. On the other hand, the smaller ones invite the viewer’s touch, almost as objects. The materials used in the compositions such as fabrics, ropes, tassels and pompoms reinforce further the tactile experience, and carry domestic feelings. By using such materials in the limits between the painting and the supporting wall, Paz interposes a barrier between internal and external, subject and object, public and private, enhancing the establishment of the dialogues between her paintings and those of her collaborators
In “Fica vai ter bolo!” the great majority of paintings come from her memories of being raised around the table, sharing food. A relaxed place of celebration, generosity, affection and desire. The process of cooking cam be compared to painting. Seasoning, homogenising, sprinkling, glazing and reducing have corresponding gestures in painting. Oils, smells, dilutions, colors, textures, relations with time and the search for a result that brings along pleasure to the senses, are also shared between both realms. Both processes embrace primary questions of identity and ancestry, triggering a network of affections and memories that culminate in unexpected images from the artist’s repertoire. Answers from her subjectivity to the world.
Each painting stores a network of social relationships to exist. Apparently disconnected images form a united body in Paz’s art production. They arise questions in the viewer such as How was that done? How did that ended up there? Who did it? Do I know what it tastes like? Where does it bring me? Each image may trigger chained reactions of affection. Paz, as many artists of her generation, believe that everything is available in the world. What is usually missing are connections, bonds, exchange.
Despite the fact the exhibition displays artworks from 21 individuals, it does not feel or should be defined as a collective exhibition but neither as a solo one. “Fica, vai ter bolo!” takes place in the intersticial area, in the interlude between the artist, her collaborators and their individualities in relation to the viewer. In that area of transition and exchange, Paz hosts them in order to establish a dialogue with her paintings
“Fica, vai ter bolo!” is an invitation to the viewer to look inwards based on the experience of looking at a body of work that is, itself, a network of associations. Everyone is welcome to connect into this interpersonal human fabric, where we coexist with other people, just like the artist and her collaborators. The exhibition is the moment to gather, consume and digest the works. What one keep from it, incorporate or become will always be individual.
Luciana Solano
March 2018
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Em 2017, Carolina Paz realizou pinturas baseadas em memórias e afetos despertados pelas palavras presentes em cartas recebidas como parte do projeto colaborativo: “Desejo Motivo”. Um ano depois, a galeria Virgilio mostra a exposição “Fica, vai ter bolo!”. Desta vez, Carolina define parâmetros, tais como tamanho, formato, técnica e tema, estabelecendo o contexto para que vinte pessoas de diferentes co
Em 2017, Carolina Paz realizou pinturas baseadas em memórias e afetos despertados pelas palavras presentes em cartas recebidas como parte do projeto colaborativo: “Desejo Motivo”. Um ano depois, a galeria Virgilio mostra a exposição “Fica, vai ter bolo!”. Desta vez, Carolina define parâmetros, tais como tamanho, formato, técnica e tema, estabelecendo o contexto para que vinte pessoas de diferentes convívios sociais desenvolvam pinturas para a criação de um novo trabalho interpessoal. Em “Fica, vai ter bolo!”, a artista transfere ao outro a ação de pintar e divide com ele o espaço expositivo. Artistas e não artistas são cúmplices em uma experiência subjetiva compartilhada. Apesar da exposição apresentar pinturas de vinte e um indivíduos, não se define como coletiva, mas tampouco como individual. “Fica, vai ter bolo!” acontece na área intersticial, no interlúdio entre a artista, seus convidados e suas individualidades. Nesta área de transição e troca, Carolina está em muitas pessoas e as recebe para dialogar com suas trinta pinturas, produzidas nos últimos dois anos.
Os motivos individuais de cada participante vão do querer sentir-se dentro do processo proposto pela artista, passando pela possibilidade de usar a pintura para lidar com desejos não realizados, ao simples fato de não se ter feito parte de grupos sociais durante a vida. As vivências, no processo de criação da imagem, propiciaram a vinte indivíduos sentimentos de gratidão, nostalgia, experiências de autoconhecimento, ilusão de congelar o passado e de reviver momentos de família, possibilidade de reformular lembranças tristes ou incompletas e até mesmo de projetar acontecimentos futuros.
O conjunto depinturas de Carolina apresentado nesta exposição vem desse lugar em torno da mesa, de afeto familiar, relaxado, de trocas, doação, celebração, desejo. A partir de movimentos espontâneos de estar presente, mergulhando em sentimentos que ativam memórias e vice-versa. São, portanto, a materialização da percepção do instante, respostas ao mundo a partir de sua subjetividade. O recorte visual não procura interpretar, mas puramente seguir essa rede de afetos e memórias que culmina em imagens do repertório da artista, por vezes aparentemente díspares, mas que compõem um corpo unificado em sua produção de arte.
Cada pintura armazena uma rede de relações sociais para existir. Como aquilo foi feito? Como foi parar ali? Quem o fez? Conheço o gosto? Aonde me leva? As imagens de cada tela são propulsoras de reações encadeadas de afeto. Como diz Carolina: “Está tudo disponível no mundo.” O que em geral falta são as ligações, os vínculos, a troca, a convivência.
As telas maiores foram pintadas sobre a intimidade de lençóis e parecem nos convidar à exploração de seus espaços, mantendo ao mesmo tempo uma tensão de voyerismo. Já os pequenos formatos sugerem a apreensão pelas mãos, como objetos. Seus tecidos e acabamentos, tais como cordas, franjas e pompons reforçam ainda mais a experiência tátil e carregam referências domésticas. Ao adicioná-los às bordas das pinturas, Carolina interfere nos limites entre pintura e parede, obra e suporte, interno e externo, sujeito e objeto, facilitando o estabelecimento de diálogos com as pinturas de seus convidados.
O processo da pintura em muito se assemelha ao de cozinhar. Gestos como o de temperar, homogeneizar, polvilhar, vitrificar, reduzir, montar, encontram correspondência na pintura. Tanto quanto seus óleos e cheiros, diluições, cores, relações com o tempo e a busca de um resultado que traz prazer aos sentidos e que carrega consigo quem somos e de onde viemos. O consumo destas comidas e obras gera um encontro de pessoas e a apreciação das mesmas depende do que nos inspira e do que retemos, incorporamos das mesmas.
“Fica, vai ter bolo!”é um convite ao visitante a adiar sua partida, a olhar para dentro de si, a partir da convivência com as imagens do outro para com elas tecer suas próprias redes de associações e, quem sabe conectá-las em um tecido humano interpessoal, onde todos existiríamos em outras pessoas, tal como a artista e seus convidados.
Luciana Solano
Março 2018
By Alexandre Nix
(translated from Portuguese – original bellow)
With a deeply generous work, Carolina Paz opens up a new gesture on the contemporary arts.
What else is possible to be done regarding painting? Despite its so many times proclaimed “death” it’s more alive than ever.
Trained sociologist, native of São Paulo and established in New York City, Carolina Paz shifts her pictorial gesture beyond the traditional questions of this genre. Her work is not intended precisely with the marks of the paint and the brush on the canvas but deals with the possible displacements of the places where the painting-object occupies in the world. In a radical gesture and, at the same time gentle, the artist takes the painting from the wall and places it at the viewer’s, sometimes literally.
This is the most visually emblematic movement of “Desejo Motivo” (Desire Motive) of 2017, an event or, as the artist calls it, an “occasion” where she, through a text-for-paintings proposition, gives the project participants images painted in oil on canvas as replies to the letters she received from them.
With a Magritte inspired style and an image repertoire summoning from Strawberry Shortcake and Beetle Bailey to Matisse and Morandi, Carolina uses images, texts, printed patches of fabric and textile trimmings to compose her paintings. “I can’t stay only in painting. My desire is to get off the wall, to relate to different people through the image: enter their homes, talk to them, dine together… for me the object is a vehicle and not the end of my work.”.
Without a doubt, her paintings, most of them in small format, videos, sculptures and other works in different media, awakens the deep desire to possess them. They are like desserts, comfort food, a welcoming bed to lay down, one of that signature article of clothing that you window shop.
As she comments, her work is not confined to the object and invite to various interpersonal experiences. It wakes us the children we once were without being a trip to the past but an childhood experience in the present, with a vision for the future. There’s also space to the other to share his or her image repertoire acting as an artist. In her last exhibition titled “Fica, vai ter bolo” (Stay, there’ll be cake!) 20 people, invited by the artist, participated with paintings picturing birthdays scenes.
Carolina Paz’s paintings don’t accommodate to walls and evoke in us the desire to handle them in some fashion or take them out of there. It’s a whole new gestural that renew the painting with a “joie de vivre” on the summoning of the active participation by the viewer, almost a co-autor of some of her works: the network of familiarity’s relations, gentleness with sleek criticism to the image and art system through an invitations to kindness and affection.
Alexandre Nix – writer and screenwriter
Brooklyn, NY – April 2018
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Com açúcar e com muito afeto – por Alexandre Nix
Em um trabalho profundamente generoso, Carolina Paz inaugura um novo gestual na pintura contemporânea
O que mais é possível ser feito em relação à pintura? Com a morte anunciada tantas vezes ela está mais viva do que nunca.
Socióloga de formação, a artista paulistana, radicada em Nova York, Carolina Paz desloca seu gestual pictórico para além das questões tradicionais do gênero. Seu trabalho não se propõe precisamente a tratar das marcas da tinta e do pincel sobre a tela, mas dos possíveis deslocamentos dos lugares que o objeto-pintura ocupa no mundo. Num gesto radical e ao mesmo tempo delicado, a artista tira a pintura da parede e a coloca na mão do espectador, às vezes literalmente.
Esse é o movimento visualmente mais emblemático da obra “Desejo Motivo” de 2017, um evento ou, como a artista denomina, um “acontecimento” onde ela, através de uma proposição de troca de textos por pinturas, dá aos participantes do projeto, imagens pintadas em óleo sobre tela como respostas às cartas que recebeu.
Com um estilo à la Magritte e um repertório de imagens que convoca desde Moranguinho e Recruta Zero a Matisse e Morandi, Carolina usa imagens, textos, retalhos de tecidos estampados e aviamentos para compor suas pinturas. “Não consigo ficar só na pintura. Meu desejo é sair da parede, me relacionar com diferentes pessoas através da imagem: entrar nas casas delas, conversar, fazer uma refeição juntos… Para mim o objeto é meio e não o fim do meu trabalho.”
Sem dúvida nenhuma, as pinturas, em sua maioria de pequeno formato, e também os vídeos, as esculturas e outros trabalhos em diferentes linguagens de Carolina despertam o profundo desejo de possui-los. São como doces, comfort food, uma cama gostosa para deitar, uma daquelas peças de roupa assinadas que você fica namorando… Uma mistura de fetiche voyerista e aconchego alegre e caloroso.
Mas como ela comenta, seu trabalho não fica só no objeto e convida a experiências interpessoais diversas. Desperta em nós a criança que fomos sem que isso seja uma volta ao passado mas uma vivência da infância no presente, com vistas ao futuro. Também existe espaço para o outro compartilhar seu repertório de imagens atuando como artista. Em sua última exposição intitulada “Fica, vai ter bolo!”, outras 20 pessoas, à convite da artista, participaram da mostra com pinturas de cenas de aniversário.
As pinturas de Carolina Paz não se acomodam na parede e nos provocam a querer mexer nelas de alguma forma ou tirá-las dali. Vê-se aí todo um novo gestual que dá à pintura um renovado “joie de vivre” na convocação da participação ativa do espectador, quase co-autor de alguns de seus trabalhos: a rede de relações de familiaridade, doçura com elegantes críticas à imagem e ao sistema de arte através de um convite à generosidade e ao afeto.
Alexandre Nix – escritor e roteirista
Brooklyn, NY – Abril 2018
by Anna Harsanyi
Caetano Veloso’s song “Sampa” is an ode to São Paulo, a city whose streets contain multiple personalities and embrace characters whose unique traits combine to tell a story of admiration and uneasiness in the song’s narrative. As a descriptor of the city, “Sampa” projects a familiar relationship to concepts of home and place. The song tells of enchantment when crossing Ipiranga and São João Avenues paired with the disappointment of urban poverty in the face of economic growth. Such juxtapositions expand beyond the locale of São Paulo and call the listener to reflect on the city as a metaphor for life’s uncomfortable changes, and the natural desire to preserve the familiar. Traditional definitions of home imply comfort and ease associated with a specific place. Despite the constant transformations taking place around us all the time, home becomes a fixed variable in an otherwise ever-changing world. When considered more broadly, and just as Veloso invites us to reflect through his song, home can be a more complex and chaotic concept. Home can be as much related to one place as it can be to its ever-changing and constantly progressing qualities. What if home is comfort in the juxtapositions and the whirlwind of change that exists all around us? Can home be dissociated from a locale, and become instead a feeling of comfort in transition?
Carolina Paz’s work “Meu canto” uses song as a medium to reflect on these questions. Paz invites audiences to sing their own conceptions of home – whether through literally singing a song reminiscent of home, or reciting mundane activities like grocery shopping lists or daily routines. Either way, the act of singing calls to mind anyone’s ability to vocalize a moment of personal connection to varying ideas of comfort and familiarity. Just as Veloso brings us into his world by unveiling the conflicting symbols and metaphors he observes in his home, participants in Paz’s project invite others to listen to the details of personal relationships to their own.
NYC, 2017
by Divino Sobral
(translated from Portuguese – original bellow)
In search of reasons to expand her research in painting, Carolina Paz put on the internet and on the facade of her former studio the following call: “Send a letter with your request, desire, subject, motive for creating an image based on your history”. Thus, the artist triggered a process of collecting stories and requests addressed to her, which resulted in a collection of letters on which she worked to create a series of works. She signed with several people an informal contract of exchange, which has agreed the exchange of a story for a painting, and established an area of relationships and intersections that, in a way, allowed the viewer to have a certain degree of participation in the genesis of painting.
In the collection of letters, there were grouped narratives of different natures: evocation of poetic memories; chronicles of daily life; reflections on art. In the first two groups, have appeared memories of childhood, affect, narratives of loneliness, homesickness, happiness, bitterness, encounter, separation, love affairs, family problems, desires for autonomy and independence, work and travel projects, impulses of life and death. In the third group, have emerged questions that involved the artistic process, opened and permeable to the intervention of another agent than the artist.
In the contemporary world, the form of communication that we traditionally know as a letter has been challenged by the use of technological equipment that gradually changes the modes of human communication. The facilities promoted by the speed and reach of the digital media (e-mail, social networks) have transformed the letter on a slow vehicle, obsolete, relegated to abandonment and oblivion. Finally, it should also be considered that, in the midst of the crisis of human relations and communication, have prevailed impersonality, the coldness of objectivity, the synthesis and the brevity that comply with the immediacy, narcissism and egocentricity, which preclude seeing and talk to each other. The opposite seems to have no more places, but it just seems.
In Desire Motive (Desejo Motivo), the intricacies of the process of exchanging the narrative written by painted image activate another process of exchange between subjectivities, in which occur sharing of intimacies, experiences, understandings and feelings. In fact, for the artist, the contact with other people inserted in her creative process, at the same time that expands her human relations, it substantiates and integrates the works of the Desire Motive (Desejo Motivo) series. The initial conversation, waged through letters sent by dozens of senders to a single recipient, is opened with painting to the audience, at the end of the project.
Although the paintings at the end of the process have had literary themes as a “subject” and “motive”, collected in the inventory of requests and desires raised with those who attended to the invitation of the artist, they are not literal and illustrative of the motivations of others that led to their existence. With a certain autonomy of the compiled motives, they obey an internal reasoning already present in the design of the paintings that were part of the series Theory of groups (Teoria dos Conjuntos), presented about two years ago. It is a reasoning that operates in the production of allegories that gathers decontextualized fragments from their respective origins and creates meanings with the joining of such heterogeneous parts.
The allegories of Carolina Paz are constructed by the relation between a single image and another linguistic element, such as letter, word, numeral or sign. The second does not act as a caption for the first, although in some cases it suggests poetic shifts and semantic puns. The allegories work visually also as an amazing method of literacy, in which words, letters or typographic signs accompany the figures. What does the image of a piece of coal have to do with the word “machine”? Then we remember that the steam engine (driven by coal burning) carries the underground message of the dreamed trip. Or what does the image of a ball have to do with the word “fly”? We thought about the movement of the ball during a penalty kick. The figure of a heart is associated with the letters A and O, which recover the sound of the word that names the figure itself. Strangely and uncomfortably, there seems to be something inaccurate that links the image to the text or signal, even if it is the mere sound of a phoneme.
Formally, the paintings follow a fairly economical methodology of procedures. The screens in small formats keep the scale of intimacy and have the edges of the surfaces and the sides of the chassis highlighted by the use of colors and for accidents that reaffirm the condition of painting not only as surface-image, but also as an object in the world. The paintings represent fragments of human body, vegetal, animal and mineral elements, foods or objects of all kinds, associated with words or signs, frontally applied on funds marked by the materiality of ink, well pasty well diluted, by the movement of the brush and colors practically plateaus, but desiring to keep affectivities. In Desire Motive (Desejo Motivo), Carolina Paz sets a field of possible articulations between these elements (image and word, figure and background) and invites the viewer to explore it.
Divino Sobral
Goiânia (Brazil, Goias), May 2017.
CAROLINA PAZ – OS DESEJOS E OS MOTIVOS DO OUTRO
Na busca por motivos para dilatar sua pesquisa em pintura, Carolina Paz pôs em circulação na internet e na fachada de seu antigo ateliê a seguinte chamada: “Envie uma carta com seu pedido, desejo, assunto, motivo para criação de uma imagem baseada em sua história”. Assim, a artista acionou um processo de coleta de histórias e de solicitações a ela endereçadas, que resultou em uma coleção de cartas sobre a qual se debruçou para criar uma série de trabalhos. Firmou com diversas pessoas um contrato informal de troca, que rezava o câmbio de uma história por uma pintura, e estabeleceu uma área de relações e cruzamentos que, de certa forma, permitiu ao espectador ter determinado grau de participação na gênese da pintura.
Na coleção de cartas, agrupam-se narrativas de diferentes naturezas: memorialismo poético; crônicas do cotidiano; reflexões sobre a arte. Nos dois primeiros grupos, afloraram recordações da infância, afetos, relatos de solidão, saudade, felicidade, amargura, encontro, separação, casos de amor, problemas familiares, desejos de autonomia e independência, projetos de trabalho e de viagem, pulsões de vida e de morte. No terceiro grupo, emergiram problematizações de questões que envolvem o processo artístico aberto e permeável à intervenção de outro agente que não o artista.
No mundo contemporâneo, a forma de comunicação que tradicionalmente conhecemos como carta foi posta em xeque com a utilização de equipamentos tecnológicos, que gradativamente alteram os modos de comunicação humana. As facilidades promovidas pela velocidade e pelo alcance dos meios digitais (e-mail, redes sociais) tornaram a carta um veículo moroso, obsoleto, relegado ao abandono e ao esquecimento. Enfim, há ainda que se considerar que, em meio à crise das relações e da comunicação humanas, imperam a impessoalidade, a frieza da objetividade, a síntese e a abreviação que atendem ao imediatismo, o narcisismo e o egocentrismo que impedem de ver e de falar com o outro. O contrário parece não ter mais lugar, mas apenas parece.
Em Desejo Motivo, os meandros do processo de troca da narrativa escrita por imagem pintada ativam outro processo de troca entre subjetividades, no qual ocorrem compartilhamentos de intimidades, experiências, vivências, entendimentos e sentimentos. Na verdade, para a artista, o contato com outras pessoas inseridas em seu processo criativo, ao mesmo tempo em que amplia suas relações humanas, substancia e integra as obras da série Desejo Motivo.A conversação inicial, travada por meio de cartas enviadas por dezenas de remetentes a um só destinatário, ao cabo do projeto é aberta por meio da pintura ao público.
Apesar de terem como “assunto” e “motivo” temas literários, coletados no inventário de pedidos e desejos levantados junto àqueles que atenderam ao convite da artista, as pinturas resultadas ao final do processo não são literais e ilustrativas das motivações alheias que acarretaram suas existências. Com certa autonomia dos motivos compilados, elas obedecem a um raciocínio interno já presente na concepção das pinturas que integraram a série Teoria dos Conjuntos(apresentada há cerca de dois anos). Trata-se de um raciocínio que opera na produção de alegorias, reunindo fragmentos descontextualizados de suas respectivas origens, criando sentidos com a junção de partes tão heterogêneas.
As alegorias de Carolina Paz são construídas pela relação entre uma única imagem e outro elemento linguístico, tal como letra, palavra, numeral ou sinal. O segundo não atua como legenda do primeiro, embora em alguns casos sugira deslocamentos poéticos e trocadilhos semânticos. As alegorias funcionam visualmente também como espantoso método de alfabetização, no qual as figuras são acompanhadas por palavras, letras ou sinais tipográficos. O que a imagem de um pedaço de carvão tem a ver com a palavra “máquina”? Aí lembramos que a máquina a vapor (movida com a queima de carvão) carrega a mensagem subterrânea da viagem sonhada. Ou o que a imagem de uma bola tem a ver com a palavra “voa”? Pensamos no movimento da bola durante a cobrança de um pênalti. A figura de um coração é associada às letras A e O, que recuperam o som da palavra que nomeia a própria figura. De maneira estranha e desconfortável, parece haver algo impreciso que liga a imagem ao texto ou ao sinal, ainda que seja o simples som de um fonema.
Do ponto de vista formal, as pinturas seguem uma metodologia bastante econômica de procedimentos. As telas em pequenos formatos guardam a escala da intimidade e têm as bordas das superfícies e as laterais do chassi destacadas pelo uso de cores e por acidentes que reafirmam a condição da pintura não somente como superfície-imagem, mas também como um objeto no mundo. As pinturas representam fragmentos do corpo humano, elementos vegetais, animais e minerais, alimentos ou objetos de toda sorte, associados a palavras ou sinais, aplicados frontalmente sobre fundos marcados pela materialidade da tinta, ora empastada ora diluída, pelo movimento do pincel e por cores praticamente chapadas, porém desejosas de guardarem afetividades. Em Desejo Motivo, Carolina Paz arma um campo de possíveis articulações entre esses elementos (imagem e palavra, figura e fundo) e convida o espectador a explorá-lo.
Divino Sobral
Goiânia, maio de 2017.
by José Bento Ferreira
(translated from Portuguese – original bellow)
The world of art results from a complex set of variables that involves several aspects of what is generically called “culture”, which includes nationality, class, various economic forces, symbolic forms, media and other determinations. This complexity, linked to the heterogeneous profile of modern societies, which in turn amplifies in the globalized world, doesn’t make the directions of artistic production random or arbitrary, but difficult to predict, evaluate and interfere with.
Successful interventions in the world of art are the result of a correct reading of this “time spirit,” or of this “time-of-now,” as readers of the philosophers Hegel and Benjamin would say. Thus, for example, the philosopher and critic Arthur C. Danto described Andy Warhol’s work as that of someone who, for some “miraculous years” at least, had the intelligence and sensitivity to understand the movements of the world of art and, therefore, offered unprecedented revelations about the very nature of artistic production. In face of the undecidability inherent in the world of art, the artist Carolina Paz creates Desire Motive (Desejo Motivo) by observing the simple and ancient characteristic of human nature: the relation of interdependence between individuals within societies.
The critic Nicolas Bourriaud believes it is possible to erect a “relational art” based on the universe of human interactions be it with producing “objects of sociality” or provoking “moments of sociality”. In spite of the generality of what can be considered a “objects of sociality” producer – which involves almost all kinds of artistic production, to the point that Bourriaud calls his thought a “relational aesthetics” – the works often considered relational tend to the conceptual sphere and accompany the movement that the critic Hal Foster described as “horizontal”, toward political, social and cultural issues, as opposed to the “verticality” of concerns about the specificity of the medium or the autonomy of artistic practice.
It is known that Bourriaud’s ideas belong to the range of theoretical references of the artist, who, on the other hand, carries enduring practice of painting. Although a painting can produce sociality and the originally collective meaning of the “subject,” “motive”, “subject” of painting (rooted as it is, as Klee describes it in the text “Creative confession”), painting seems little accustomed to Relational art, especially the painting of intimate content. Desire Motive (Desejo Motivo) surprisingly articulates the introspective pictorial production to the action of relational character, illuminating the still surrounded process of mysteries of the artistic creation, as it appoints, with intelligence, the title.
What motivates an artist to produce a certain work, to choose a certain form for the work? A first reading of the expression “desire motive” suggests a lack of subject matter, a position against the exhaustion of the artistic languages that obliges the artist to appeal to the viewers in search of the themes, reversing the conventional direction of the artist on the viewer, by means of the work, by an act of the spectator about the artist, through the text that inspires the work. Once the paintings have been produced and the texts shared, this first impression, which might not be of all false, changes significantly.
The heterogeneity of the texts obtained by the artist reveals, however, a common thread in several ways to address the need for contact with others that even a good solitary life does not completely ignore. The tension between the intimacy and conviviality is expressed by the memory of the contact, or by his demand, or by the consideration of the means of writing, of the charter, of the exchange and of the painting as forms of human contact, for real, as opposed to the simulations that are imposed by alienated labor, by the privatization of public space or by the iconomania of the social networks.
Some texts reached poetic intensity and formal elaboration. Others willfully avoided any literary pretensions. All the texts contributed to the whole of the work with a human reality without which the paintings produced by free association would be a “random series of signs without flesh”, as the critic Fredric Jameson deplores in postmodernism. With this “human reality”, these paintings gain the meaning of the affective and collective that is lacking to the non-places by which one passes without leaving marks, and also that is lacking to the images that want to show everything and, that is why, hide the real. A human dimension of lived experience emerges in texts, protected by the intimacy of epistolary language and the guarantee of anonymity.
The work of art itself is not restricted to the pure visual form of paintings, which would make it the only material counterparts of the work. The texts, the paintings and the moment of the meeting between the writers of letters and the paintings are aspects of the same “object distributed in time and space”, as formulated by the anthropologist Alfred Gell regarding the corpus of works of art. The figures that appear in the paintings are like doors that open to a myriad of images produced collectively by the contact established between the artist and the participants.
With that, Desire Motive (Desejo Motivo) enlists in the lineage of experiences like those of psychoanalyst Nise da Silveira, who saw in the image a “door to the inner world” of her patients, some of whom became artists approved by the world of art; or those of Lygia Clark, that moved the artistic production for therapeutic practice, with her “relational objects”, which are not works of art, but parts of a work of art that is the own use of the “customers”, that would be more or less successful to the extent that these were capable of producing and narrating internal images from experience that they have underwent. The big difference between Desire Motive (Desejo Motivo) and “structuring the self” is that we have access to texts that deflagrate the images which appear in works of Carolina Paz, unraveling the mystery, as would have said Danto; while records of Lygia Clark remain almost all strangers because of the dispute of the heirs for copyright. The idea of a “distributed object” (composed of letters, paintings and meeting) points to an image that is not restricted to visuality, but involves several interactions between figure, body and surrounding, as I suppose thinks Hans Belting, author of An anthropology of images.
The free correlation between signified and signifier is a central aspect of Desire Motive (Desejo Motivo), since the series is constituted by the association between figure and word (or graphic sign). The procedure retakes surrealist free association and implements an “automatic production of causality”, as described by critic Peter Bürger for the legacy of historical vanguards after the failure of their intentions. Overlay or montage also characterize the concept of post-avant-garde of artwork, according to Bürger, and appear explicit in the work of Carolina Paz. The figure belies the merely indicial character of the graphic signal; rather, give it life. Already the sign modulates the figure, changes its sense and indicates, maybe, a third dimension of the image, which does not allow it to be clearly defined, elusive, unspeakable and unrepresentative, but at the same time, interpersonal, affective and experienced: a real human contact, to apart from the whole simulation.
Carolina Paz’s paintings could be admired independently of the set of relationships locked around them, but this would be to consider a work of art regardless of the historical context, of the positioning in relation to others, of the very life of the artists (the letters written by they). We are not willing to sacrifice the world of life, not even when we are linked to a certain modernist view of art. Thus, not only letters, with desires-motives, should be considered as constitutive parts of the work, but also the moment that the artist calls “happening”, a term that theory opposes to “event”, as something that breaks out in the reality, in manner spontaneous, inexorable and imponderable.
As has been said, Desire Motive (Desejo Motivo) operates in the key of “automatic production of causality”. In spite of the planning of the work phases and the technical control of the practice of painting, or precisely because of them, a high degree of imponderability appears in the profile of the participants, in the result of the paintings produced by means of free association and, finally, but not least, at the time traditionally significant for the practice of painting when the work is delivered. The history of art is indeed replete with reports of dazzles and misunderstandings in this context of revelation. Echoes in the history of art will be visible at the moment when the authors of the letters will seek, among the series of paintings, the one that translates their own history. The expected diversity of reactions complete Desire Motive (Desejo Motivo), making it a kind of diagram of the experience of artistic expression, revealing the relationships that connect author, work and audience.
But the image-happening of this moment of retribution by the letters sent is not only a conclusion; it must reverberate, producing new relationships. The paintings will be taken with the people, but they can be exposed in other circumstances. Thus, “desires-motives” (given and retributed) remain embedded in the context of a systematic exchange of gifts that establishes a certain record of the circulation of images. Doubts, emotions, estrangement, hesitations experienced by the participants while writing their stories will be redeemed and shared in this encounter, in the image-happening that is also an image-gift. The human reality is not only constituted by interdependence, but imaginal, that is, mediated by images, whether in interpersonal relationships or in relation to the world, between being and the world, as well as between being and others.
José Bento Ferreira,
June 2017.
Uma poética das relações humanas
O mundo da arte resulta de um conjunto complexo de variáveis que envolve diversos aspectos do que genericamente se chama “cultura”, o que inclui nacionalidade, classe, várias forças econômicas, formas simbólicas, mídia e outras determinações. Essa complexidade, ligada ao perfil heterogêneo das sociedades modernas, que por sua vez se amplifica no mundo globalizado, não torna os rumos da produção artística aleatórios nem arbitrários, mas difíceis de prever, avaliar, interferir.
Intervenções bem-sucedidas no mundo da arte são o resultado de uma correta leitura desse “espírito de época”, ou desse “tempo-de-agora”, como diriam leitores dos filósofos Hegel e Benjamin. Assim, por exemplo, o filósofo e crítico Arthur C. Danto descreveu o trabalho de Andy Warhol como o de alguém que, ao menos durante alguns “anos milagrosos”, teve inteligência e sensibilidade para compreender os movimentos do mundo da arte e, por isso, ofereceu revelações sem precedentes acerca da própria natureza da produção artística. Em face da indecidibilidade inerente ao mundo da arte, a artista Carolina Paz cria Desejo Motivo pela observação de característica simples e antiga da natureza humana: a relação de interdependência entre os indivíduos no seio das sociedades.
O crítico Nicolas Bourriaud acredita ser possível erigir uma “arte relacional” alicerçada no universo das interações humanas, seja com “objetos produtores de socialidade”, seja provocando “momentos de socialidade” propriamente ditos. Apesar da generalidade do que pode ser considerado objeto produtor de socialidade – o que envolve quase todos os tipos de produção artística, a ponto de Bourriaud intitular seu pensamento de “estética relacional” –, os trabalhos com frequência considerados relacionais tendem à esfera conceitual e acompanham o movimento que o crítico Hal Foster descreveu como “horizontal”, em direção a questões políticas, sociais e culturais, por oposição à “verticalidade” das preocupações concernentes à especificidade do meio ou à autonomia do fazer artístico.
Sabe-se que as ideias de Bourriaud pertencem ao leque de referências teóricas da artista, que, por outro lado, exerce prática duradoura de pintura. Apesar de uma pintura poder produzir socialidade e do significado originalmente coletivo do “tema”, “motivo”, “assunto” da pintura (por mais enraizado que esteja, como descreve Klee no texto “Confissão criadora”), a pintura parece pouco afeita à arte relacional, sobretudo a pintura de teor intimista. Desejo Motivo surpreendentemente articula a produção pictórica introspectiva à ação de caráter relacional, iluminando o processo ainda cercado de mistérios da criação artística, conforme designa, com inteligência, o título.
O que motiva um artista a produzir determinado trabalho, a escolher determinada forma para o trabalho? Uma primeira leitura da expressão “desejo motivo” sugere falta de assunto, um posicionar-se frente ao esgotamento das linguagens artísticas que obriga a artista a recorrer aos espectadores em busca dos temas, invertendo a direção convencional da atuação da artista sobre o espectador, por meio da obra, por uma atuação do espectador sobre a artista por meio do texto que inspira a obra. Uma vez produzidas as pinturas e compartilhados os textos, essa primeira impressão, que talvez não seja de toda falsa, altera-se sensivelmente.
A heterogeneidade dos textos obtidos pela artista revela, contudo, um traço comum nas diversas maneiras de tratar da necessidade de contato com os outros, de que nem mesmo uma boa vida solitária prescinde completamente. A tensão entre a intimidade e o convívio se expressa pela memória do contato ou por sua procura, ou pela própria consideração dos meios da escrita, da carta, da troca e da pintura como formas de contato humano real, por oposição às simulações que se impõem pelo trabalho alienado, pela privatização do espaço público ou pela iconomania das redes sociais.
Alguns textos atingem intensidade poética e elaboração formal. Outros evitam de modo intencional qualquer pretensão literária. Todos contribuem para o conjunto da obra com uma realidade humana sem a qual as pinturas produzidas por livre associação seriam uma “ciranda aleatória de signos descarnados”, como o crítico Fredric Jameson deplora no pós-modernismo. Com essa “realidade humana”, essas pinturas ganham o significado afetivo e coletivo que falta aos não-lugares por onde se passa sem deixar marcas, às imagens que tudo querem mostrar e, por isso mesmo, escondem o real. Aflora nos textos uma dimensão humana da experiência vivida, protegida pela intimidade da linguagem epistolar e pela garantia do anonimato.
O trabalho de arte propriamente dito não se restringe à pura forma visual das pinturas, o que as tornaria as únicas contra partes materiais da obra. Os textos, as pinturas e o momento do encontro entre os missivistas e as pinturas são aspectos de um mesmo “objeto distribuído no tempo e no espaço”, conforme formulação do antropólogo Alfred Gell a respeito do corpus das obras de arte. As figuras que aparecem nas pinturas são como portas que se abrem para uma miríade de imagens produzidas coletivamente pelo contato estabelecido entre a artista e os participantes.
Com isso, Desejo Motivo inscreve-se na linhagem de experiências como a da psicanalista Nise da Silveira, que via na imagem a “porta para o mundo interno” dos pacientes, alguns dos quais se tornaram artistas chancelados pelo mundo da arte; ou de Lygia Clark, que transitou da produção artística para a prática terapêutica, com seus “objetos relacionais”, que não são obras de arte, mas partes de uma obra de arte que é o próprio uso sobre os “clientes”, que seria mais ou menos bem-sucedido na medida em que esses fossem capazes de produzir e relatar imagens internas a partir da experiência a que se submeteram. A grande diferença entre Desejo Motivo e a “estruturação do self” é que temos acesso aos textos que deflagraram as imagens do trabalho de Carolina Paz, desvendando o mistério, como diria Danto; ao passo que os registros de Lygia Clark permanecem quase todos desconhecidos por causa da disputa dos herdeiros por direitos autorais. A ideia de um “objeto distribuído” composto por cartas, pinturas e por um encontro aponta para uma definição de imagem que não se restringe à visualidade da figura, mas envolve diversas interações entre figura, corpo e meio, tal como pensa Hans Belting, autor de Uma antropologia das imagens.
O jogo livre entre significado e significante é um aspecto central de Desejo Motivo, uma vez que a série se constitui pela associação entre figura e palavra (ou sinal gráfico). O procedimento retoma a associação livre surrealista e implementa uma “produção automática de causalidade”, conforme descrição do crítico Peter Bürger para o legado das vanguardas históricas depois do fracasso das intenções vanguardistas. Sobreposição ou montagem também caracterizam o conceito pós-vanguardista de obra de arte segundo Bürger e aparecem explícitas no trabalho de Carolina Paz. A figura desmente o caráter apenas indicial do sinal gráfico; antes, dá-lhe vida. Já o signo modula a figura, altera o seu sentido e indica, talvez no fundo, uma terceira dimensão da imagem, que não se deixa definir claramente, inapreensível, indizível e irrepresentável, mas ao mesmo tempo interpessoal, afetiva e vivida: um contato humano real, para além de toda simulação.
As pinturas de Carolina Paz poderiam ser admiradas independentemente do conjunto de relações travado em torno delas, mas isso equivaleria a considerar uma obra de arte a despeito do contexto histórico, do posicionamento em relação aos outros, da própria vida dos artistas (as cartas escritas por eles). Não estamos dispostos a sacrificar o mundo da vida, nem mesmo quando nos vinculamos a uma certa visão modernista de arte. Assim, não apenas as cartas, com desejos-motivos, devem ser consideradas partes constitutivas do trabalho, mas também o momento que a artista chama de “acontecimento”, termo que a teoria opõe a “evento”, como algo que irrompe no real de maneira espontânea, inexorável e imponderável.
Como foi dito, Desejo Motivo opera na chave da “produção automática de casualidade”. Apesar do planejamento das fases do trabalho e do controle técnico da prática da pintura, ou justamente por causa deles, um alto grau de imponderabilidade apresenta-se no perfil dos participantes, no resultado das pinturas produzidas por meio de associação livre e, por fim, mas não menos importante, no momento tradicionalmente significativo para a prática da pintura quando o trabalho for entregue. A história da arte de fato está repleta de relatos sobre deslumbramentos e incompreensões nesse contexto de revelação. Ecos da história da arte serão visíveis no momento em que os autores das cartas buscarão, em meio à série de pinturas, aquela que traduz a sua própria história. A diversidade esperada de reações completa Desejo Motivo, tornando-o uma espécie de diagrama da experiência de expressão artística, revelando as relações que conectam autor, obra e público.
Mas a imagem-acontecimento desse momento de retribuição pelas cartas enviadas não é apenas uma conclusão; deve reverberar, produzindo novas relações. As pinturas serão levadas com as pessoas, mas podem ser expostas em outras circunstâncias. Assim, os “desejos-motivos” dados e retribuídos permanecem inseridos no contexto de uma troca sistemática de dádivas que estabelece um determinado registro da circulação de imagens. Dúvidas, emoções, estranhamentos, hesitações vividas pelos participantes ao escrever suas histórias serão redimidas e compartilhadas nesse encontro, na imagem-acontecimento que é também uma imagem-dádiva. A realidade humana não é apenas de interdependência, mas imaginal, isto é, mediada por imagens, seja nas relações interpessoais, seja na relação com o mundo, entre o ser e o mundo, tanto quanto entre o ser e os outros.
José Bento Ferreira,
Junho de 2017.
por Divino Sobral
Em Teoria dos conjuntos, Carolina Paz apresenta o desdobramento de sua investigação poética por meio do agrupamento de uma instalação e de treze pinturas, sobre suportes de formatos e dimensões diferentes. A exposição na Galeria Virgílio mostra que a artista ao assumir a pintura como meio de sua expressão criou um agravamento em seu processo criativo, que resulta, sobretudo, na complexidade da obra e na opacidade que recobre sua significação, tornando-a enigmática.
A exposição aponta para a concentração dos interesses artísticos de Carolina Paz após ter pesquisado diversos caminhos conceituais e metodológicos: apropriação de artigos domésticos; catalogação de prosaicas ações cotidianas; arquivamento de indícios da relação do corpo com os objetos; colecionismo dos vestígios da passagem do tempo. Também revela o abandono das metodologias tributárias da arte processual, do minimalismo e de certas referências do conceitualismo anteriormente utilizadas. Enfim, mostra a superação do aspecto quase monocromático, que marcou muito de sua produção anterior, e apresenta sua adesão à paleta cromática mais diversificada e aos suportes e técnicas tradicionais da História da Arte (e nem por isso menos desafiadores) em função do aprofundamento de sua poética, comprometida tanto com a inteligência plástica que rege a estrutura formal dos trabalhos quanto com a pulsão subjetiva que desencadeia conjunções imagéticas instigantes.
É necessário considerar que na trajetória da artista a prática da pintura figurativa sempre esteve presente em seu rol de técnicas, todavia acompanhada por pesquisas nos campos da instalação, do objeto ou do vídeo. Aliás, vale ressaltar que seu raciocínio pictórico geriu soluções empregadas em trabalhos executados com outros meios, seja no vídeo Sem título (2011) em que a alvura do açúcar cobre e apaga o vermelho da estamparia de uma toalha de mesa, seja no desenho/instalação Todo o tempo (2013) que inventaria as nuances de cor deixadas por manchas de café sobre papel branco.
Esta é a segunda vez que a artista apresenta em exposição individual somente trabalhos de pintura. Acontecimento que ocorre após quase sete anos sem se dedicar exclusivamente à categoria. Para ela é um momento de introspecção mística e de reflexão sobre o ato de pintar e de reunir figuras e sinais, capazes de dialogar com o nosso tempo, de responder à sensibilidade e à inteligência do presente. Seu propósito é materializar obras que reflitam o encontro de sua subjetividade com o mundo, ao mesmo tempo em que encorpam reflexões sobre as condições de expansão e de limite dadas à pintura, sobretudo figurativa, dentro do território da arte contemporânea.
À primeira vista, as pinturas de Carolina Paz atraem o olhar pelo aspecto naturalista, resultado da fatura detalhada e da disciplina do ofício. Elas despertam atenção pela qualidade técnica; pelo sóbrio e bem dosado cromatismo; pelas sutis modelações de luz e sombra; pela representação de extenso leque de coisas e seres, fazendo uso de diferentes maneiras de pintar; pela ilusão de volume das formas em contraste com os fundos desprovidos de profundidade; pelo amplo repertório de figuras e símbolos alegoricamente configurados em conjuntos sobre as superfícies das telas.
Carolina Paz, para a conceituação dos trabalhos exibidos nesta mostra, toma em empréstimo à Matemática a Teoria dos Conjuntos. Mas para a artista não se trata de desenvolver operações matemáticas, como fazia Ivan Serpa (1923-1973), mestre carioca do Concretismo que realizava cálculos de progressões para executar algumas obras de sua fase geométrica mais rigorosa e disciplinada. Trata-se, sim, de usar a referência matemática para criar trabalhos que não se portam como operações ou ilustrações da teoria e nos quais o pensamento poético escapa à razão, sendo a imaginação responsável por articular farta simbologia contida nos elementos figurativos e sinais gráficos. Os trabalhos de Teoria dos conjuntos direcionam para o imaginário, para o metafórico, para os enigmas, desorientando poeticamente o raciocínio matemático, e orientando o espectador a descobrir possíveis combinações de conjuntos dentro da exposição, e a perceber que ela mesma funciona como o conceito de “Conjunto Potência”, definido como reunião de todos os subconjuntos formatados em cada obra.
Da lembrança da aula de matemática advém a conceituação e os exemplos da Teoria dos Conjuntos: conjuntos unitário e vazio; subconjuntos; relações de união, intersecção e diferença entre conjuntos de vasta classificação de números: naturais; inteiros; racionais; irracionais; reais. A afirmação da lógica que regula existência, conteúdo, pertinência e condicionantes, e configurada por amplo código de sinais correspondentes às implicações envolvidas na teoria: pertence e não pertence; está contido e não está contido; contém e não contém; existe e não existe; se e somente se; etc. Com os fundamentos da Teoria dos Conjuntos é que se desenvolvem cálculos de análise combinatória e probabilidade importantes a várias áreas da matemática.
Deslocando as relações estabelecidas pela Teoria dos Conjuntos até o campo artístico, Carolina Paz nos propõe pensar cada um dos trabalhos exibidos nesta exposição como um conjunto particular: cada pintura, em si mesma; os dípticos de telas casadas; a parede pintada de alaranjado que suporta a coleção de diversas pinturas; as constelações de pequenas pinturas executadas sobre pequenas latas. É, portanto, como conjuntos, que as obras tramam relações de intersecções, pertencimentos e combinações entre os elementos figurais e simbólicos, e se constituem como conjunções plásticas de natureza alegórica.
Sobretudo nos dois dípticos e nas pinturas de diferentes formatos e dimensões, são procedimentos alegóricos que regem as diversas relações travadas entre os elementos heterogêneos agrupados sobre a tela. Alegorias cujos sentidos podem ou não estarem apontados nos títulos de cada obra.
Na tentativa de penetrar na constituição plástica das pinturas de Carolina Paz, recupero aspectos do conceito de Alegoria formulado por Walter Benjamin: “as alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas”, e “é sob a forma de fragmentos que as coisas olham o mundo através da estrutura alegórica”, “em torno de cujo centro agrupam-se emblemas… ordenados arbitrariamente”.i Imagens tão importantes a Walter Benjamin, a ruína e o fragmento testemunham algo que se perdeu e falam da impossibilidade de abarcar a totalidade do pensamento e de definir uma unidade por meio da obra; são partes avulsas cujos significados não se fecham diante da incompletude e da ausência de contextualização. Ao pensar a condição do fragmento postulada por Benjamin, Peter Bürger assinala que “o alegorista arranca um elemento à totalidade do contexto da vida, isola-o e priva-o de função”, e por isso “cria sentido pela junção dos fragmentos”; sentido esse “diferente do sentido original dos fragmentos”.ii
Arrancados de seus contextos originais, as figuras, símbolos e sinais representados arbitrariamente nas pinturas de Carolina Paz entram em processos de conjunção e de combinação, por meio dos quais alteram seus significados originais e adquirirem outras significações, como emblemas essencialmente plásticos. Mas, como interpretar as conjunções de fragmentos criadas por Carolina Paz a cada pintura?
No díptico Xadrez, a tela pintada como uma caixa de tabuleiro de xadrez, em preto e branco, sustenta uma pedra pousada sobre o lado superior do chassi: um seixo rolado sobre o qual está pintado um olho aberto, fixo no olhar do espectador. A obra coloca o paradoxo causado pela dinâmica do jogo – entre regras e acaso – em contraste com a inércia da pedra que traz a memória do lugar de onde foi extraída sob a fixidez congelada da visão; promove a junção das materialidades, a transformação da natureza em arte (o gesto que se afirma enquanto pintura), e ao fim mais fomenta indagações no leitor do que dá respostas aos seus questionamentos.
No outro díptico, Clara Luz, duas telas retangulares de tamanhos diferentes e com os fundos pintados de preto profundo são emparelhadas em posição vertical e em ordem decrescente; na tela à esquerda estão representados um fragmento de arte egípcia, um braço dobrado em cuja mão repousa um mangual, símbolo da realeza do faraó, e logo abaixo dentro de um círculo de coloração quase dourada, um corvo negro; na tela à direita apenas uma representação da lua cheia, em preto, branco e cinza, tendo tamanho semelhante ao do círculo da tela anterior. Do fragmento egípcio ressoam as vibrações do sagrado e a ideia de imortalidade da alma, que entram em oposição à imagem do corvo imóvel que vem soar o “Nunca mais” repetido no célebre poema de Edgar Allan Poe; já lua cheia, como nostálgica divindade noturna, insere o mistério de suas ações sobre a natureza e sobre os sentimentos e os estados de espírito humanos. Mas como alegoria a obra nos diz que esses significados devem ser transitórios, pois na condição de fragmento a significação torna-se passageira, transforma-se conforme passa o tempo e muda o espaço. A ruína do sentido.
Das pinturas exibidas na exposição, são dispostas individualmente apenas os dois dípticos mencionados e a pintura Patanjali (cujo título é uma homenagem ao nome de um dos mestres da yoga) que representa sobre fundo dourado uma vaca indiana (logo sagrada) posicionada entre símbolos de chaves. As demais pinturas estão inseridas dentro de um conjunto mais amplo, exibidas sobre a maior parede da sala de exposição, pintada de uma delicada tonalidade de alaranjado (cor que as religiões orientais consideram possuir propriedades místicas). Esse conjunto é constituído por uma dezena de pinturas executadas sobre suportes ovais, redondos, quadrados e retangulares, dispostas em alturas diferenciadas em ritmo coreográfico, que convida o olhar do espectador a bailar. A pintura da parede com uma cor diferenciada não é encarada apenas como recurso de expografia, mas é definida pela vontade de posicionar as obras em outro lugar, sob outra temperatura e com aura diferente daquela encontrada dentro do imperativo e também exaurido cubo branco.
As pinturas reúnem conjuntos de elementos heterogêneos: Life on Mars: planeta Marte, flor-de-lótus, raposa, sinal de parêntese; Tudo azul: borboleta, menir, símbolos celta para sol e coração; Passe de mágica: cristal, osso do fêmur, folha de erva, mão em gesto de benção; Calvados: boi, osso da bacia, guarda-chuva fechado, roda budista; Santo Antônio: peixe, travesseiro, galhos de bambu, duas alianças; Glorinha: flores, xícara, folha de helicônia, cabra; Afortunada: frasco de perfume, pedra, duas colheres de prata, círculo e triângulo; A realidade: olho cercado por colar de diamantes, rinoceronte, folha de espada de São Jorge, símbolos de masculino e feminino; No aguardo dela: cachorro galgo, escova de cabelo, espiga de milho, símbolo egípcio referente à água; Sandro: rosa branca, concha, colher de prata, sinal de exclamação. Eis a listagem dos conjuntos representados somente sobre as pinturas dispostas sobre a parede alaranjada.
Embora operando com o heterogêneo, existe certa afinação na escolha dos fragmentos representados por Carolina Paz. Será possível que a repetição de alguns desses elementos ou tipos de elementos assinala possíveis significações, embora eles estejam distantes e alheios de seus contextos de origem? É notável nos conjuntos representados em cada pintura a junção de fragmentos de ordens humana, mineral, animal e vegetal postos sobre uma só superfície com a mesma força plástica e com a mesma presença incômoda em busca de sentido. Não existe hierarquia entre eles; tampouco relações diretas; cada fragmento tem a mesma importância que o outro e é representado isoladamente em frontalidade ou em lateralidade, sem obliquidade ou perspectivação, não dentro, mas sobre o espaço pictórico raso, característico da zona interna dos conjuntos preenchida por campos de cor de mínima vibração tonal.
Menos alegórica e a única obra em processo desde 2014, a instalação intitulada Coisinhas/Little things é executada com pintura sobre latinhas de pequenas e variadas dimensões, dispostas como constelações irregulares sobre locais desprestigiados da parede, que são usualmente considerados de visibilidade inferior. Como coisas desprovidas de grande importância não ocupam o centro da parede, mas as margens ou os cantos, ativando as chamadas zonas mortas da arquitetura expositiva. A obra, que de certa maneira politiza a pequena dimensão, surgiu durante o processo de residência artística em Nova York, do confronto com a ampla escala da arte americana e internacional, da tomada de consciência da precariedade que afeta ao artista e da desestrutura do sistema institucional de arte no Brasil.
Nessa instalação a relação exterior/interior e continente/conteúdo que a latinha contém em seu contexto original fica latente, pois todas se encontram fechadas e se abrem apenas ficcionalmente para indagações sobre as miudezas que antes continham. Distribuído em conjuntos que mesclam escalas pequenas e diminutas o trabalho explora os ritmos das combinações de latas cujas tampas são revestidas por peles pictóricas, ora abstratas e excessivamente matéricas, com espessa aplicação de tinta a óleo de cor prata, dourada ou preto e branco, ora com pinturas figurativas detalhadamente elaboradas, feitas como delicadas miniaturas carregadas de afetividade, contendo cada uma representações isoladas: uma colherinha; duas folhinhas de hortelã; uma banana; um elefante; um urso panda; um gatinho; um coelhinho; um guaxinim; uma mulher de costas; um coração; um crâneo. Representações em grau diminutivo, os raros elementos figurativos estão dispostos dentro das constelações de latinhas como estrelas pontuais capazes de nomeá-las.
Nas pinturas de Carolina Paz o sentido não se encerra, pois está em processo aberto e em fluxo contínuo, parece transitar por muitos sentidos. As figuras, sinais e símbolos nelas representados assumem a transitoriedade e a historicidade do fragmento. A ruína não significa hoje apenas o que antes significara. Conforme aponta Jorge de Freitas, “a alegoria apresenta modos de significação diferentes, atestando a impossibilidade de aprisionar o sentido último em uma estrutura fechada e imutável. Com isso, o processo de significação alegórico demonstra que o sentido é histórico e suas significações formam-se em uma constituição efêmera e fragmentária”.iii
Alegóricos, os trabalhos de Carolina Paz parecem simultaneamente negar e aceitar todas as hipóteses de sentido. São paradoxais à medida que instituem um problema portador de sua própria irresolução, e abertos à medida que assumem que podem ter várias leituras, nenhuma mais relevante que a outra. Se para algumas religiões os animais são personificações do sagrado, para a psicanálise a presença deles nos sonhos é interpretada como símbolo das ações do inconsciente; se pedras podem ser fontes da ligação com divindades, podem também ser marco de ritos de morte, símbolo de acusação ou matéria bruta da poesia; se as plantas são mediadoras entre o humano e o sagrado, também guardam propriedades farmacológicas capazes de curar ou matar; se os ossos presenciam a finitude da vida humana, seus fósseis resistem ao desaparecimento e guardam para o futuro as características fundamentais daquele que outrora viveu; os astros são tanto objetos de estudo da astronomia e assunto popular da imprensa contemporânea, quanto regentes do imaginário celeste e protagonistas das cosmogonias e das mitologias humanas mais arcaicas. Enfim, o que as pinturas de Carolina Paz parecem insinuar é que os sinais da linguagem, com os quais fundamos nossa cultura, não podem definir ordem, ritmo ou sentido à imagem solta, feita de diversos fragmentos, e que as tarefas de configuração, decifração e significação do mundo só podem mesmo ser desempenhadas parcialmente.
Divino Sobral
Artista e curador independente.
Goiânia, outubro de 2015.
i Walter Benjamin. A origem do drama barroco alemão. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1984, pags. 200, 208, 210.
ii Peter Bürger. Teoria da Vanguarda. Tradução: João Pedro Antunes. São Paulo, Cosac Naify, 2008, pag. 141.
iii Jorge de Freitas. Anotações sobre a teoria da alegoria barroca de Walter Benjamin. Em Tese, Belo Horizonte, Vol 20, Nº2, maio/agosto, 2014, pag. 234.
by José Bento Ferreira
(translated from Portuguese – original bellow)
If the category “work of art” is no longer commonplace and became a discussion point, what to say of the word “work” as a set of works carried out by a given person? What unifies the trajectory of an artist? What is the relation between the unity of the work and the personal identity of individuals, whether artists or not? These questions have already been answered in a number of ways, but get mixed up when considered from a global perspective, beyond that of the history of art and its philosophical references.
In this expanded field, the images produced by the artists appear as results of human relations and not simply as pure and individual creations, since the conscience of each individual may not be other than the “sum of his relations with other people”, as written by anthropologist Alfred Gell when addressing these issues precisely. There would be, according to the author, a “structural isomorphism” between the work of an artist as a whole and the constellation of interpersonal relations that points solely at himself. As well as Leibniz’s “Monad”, each individual is unique, but “has relations that express all the others”.
Wouldn’t it be just a coincidence that the idea of metaphysical thinker has served both the philosopher Walter Benjamin, to illustrate a conception of history, and the anthropologist Maurice Godelier, to characterize the relationships between people and things from the concept of gift or donation: “the part is all; all is full in each one of its parts.” In several circumstances, the two authors have used metaphysics to strengthen materialistic positioning regarding the philosophy of history and the social theory, respectively.
These ideas become more understandable to what we know concerning the works of art, that is, that the expressive possibilities are determined by the context in which each one of them belongs to and that this context involves both subjectivity of the artist and the existing intersubjective relations around him. Therefore, an important work of art can be an identical object to a common thing. The force of the art work depends on its capacity to express the beam of relations that involves the mind and the world of an artist.
The difficulty is also understood as a way to evaluate the works of art, since the circumstances change and only the continuity of the artistic expression under several perspectives assures its consistency, even though never in a definitive way. Different circumstances can increase or reduce the interest in certain works or historical moments.
The artist Carolina Paz affirms that her work has gone through significant transformations after the artistic residences performed through 2014 in the United States and in Europe. A new stage can enhance the previous moments. In these more recent works, she resumes the practice of painting without abandoning the reflective and conceptual character of the sculptures.
The “isomorphism” between works of art and human relations occurs before and after the period pointed as a decisive moment. The previous period contains a series of works inspired by the intercultural habit to drink coffee. It would be possible to argue that Two, Fold, Contact and All the time have nothing to do with the habit and explore only the forms of objects, the tensions created by the weights, the unstable balance of the liquid, the color and the way the stains are formed on the paper.
The interpretation that takes precedence over visualization is not wrong, but it is incomplete. The works of Carolina Paz are not like those of Marcel Duchamp’s ready-mades, who, according to philosopher and critic Arthur C. Danto, were “selected precisely by the lack of aesthetic interest.” The shapes, tensions and juxtapositions of cups, liquids and wires create delicate relations that temporarily remove the objects from their practical context. The temporary character of this operation, however, is not accidental.
The original context of where the objects used in the works come from is just as significant as the visual beauty obtained from them. The invitation to coffee is a universally known code. In Carolina Paz’s works, coffee works as the images of the means of mass communication in the pop art, against the abysmal dimensions explored by the abstract expressionist painters. With marks of cups and stains of coffee on paper, the artist produces works that can be seen as abstract graphical art, but whose shapes, instead of denying conviviality and communicability, result from them.
The period from 2014 and 2015, in turn, is characterized by the use of preexisting images and by the resumption of painting. The meeting of these two aspects is not easy, since the culture of modern art attributes to the work of the painter the noble quality of the individual creation. But as it has been demonstrated before, the possibility to create free shapes from conviviality and communication, in this new movement the artist redirects painting toward an intersubjective universe.
Intersubjectivity is not the opposite of subjectivity. The artist affirms that she selects images from several sources “to create her own signs.” The relations between the images produce surreal associations, but instead of the dreamlike life, the succession refers to certain forms of sociability. Plants and animals, painted on paper or on wooden objects, allude to magical, totemic symbols and are distinguished by the bottom painted with the golden of the icons. In certain works, the images are organized virtually, as if they made up a language of hieroglyphs.
The images on wood exert the old function to protect the containers that have sacred or precious objects. Pictures of the back stand out the close character of that which the image was made to contain. On the other hand, when the images turn toward us from the decorative bottom, they are immersed in intertextuality nets, such as paintings made from illustrations of Pierre Bourdieu’s books. The artist deals with the relations between privacy and talkativeness, between individual conscience and the contacts with others.
Alfred Gell’s idea that the work of an artist is a “distributed object” structurally similar to that of the internal conscience of the artist who, in turn, configures itself from real circumstances (historical, social, etc) is applied in the case of Carolina Paz. In an ambitious study, the anthropologist associates to the works of art the speech of a Dakota informer, cited by sociologist Émile Durkheim:
Everything that moves, lingers here or there, at a moment or another. The bird that flies dwells on a place to make the nest, on another to rest from its flight. The man, who walks, holds back when he is pleased. The same happens with the deity. The Sun, so shining and magnificent, is a place where she dwelled on. The trees and the animals are others. The Indian thinks about these places and sends his prayers to them, so that these reach the place where god stopped and so that they get assistance and blessing.
Anthropologist Lévi-Strauss is amazed at the similarity between this animistic description and the idea of “duration” of philosopher Henri Bergson. Alfred Gell, in turn, comments the “doctrine of the living present” of philosopher Edmund Husserl. The conscience of the time while “conscience flow” would not have the shape of a thing, but that of movement, duration. Each work of art would be a breakpoint capable to express this flow due to the track that refers to the previous moments and to the direction that points to what is to come.
Each image chosen and produced by Carolina Paz is one of these breakpoints, “a place where god stopped” amid the flow of the conscience. Images are crystallizations, intervals of discontinuity. In them it becomes visible a given conjunction of factors that occurs at an only moment, and that we can call “Monad” or “constellation.” In this conjunction are implied both the previous works to the artist and the next ones, both her state of mind and the spirit at the time she is capable to capture, both a deep sensitivity and the opening for dialogue.
These factors are accidental in the life of artists. We can consider the possibility of a good indifferent artist to human feelings or what other people think. But this does not keep the quality of her work from dwelling in the capacity of each one of the parts (the works) to express the whole and in the capacity of the work as a whole to express the context amid which it was produced, and this throughout the time.
In the case of Carolina Paz, sensitivity and dialogue allow capturing and expressing something significant regarding the concept of work of art and of the relation between the work and the conscience. The diversity of the set of works makes up only one “distributed object” (the work, the labor) no matter how heterogeneous the parties are. Comparably, no matter how diverse the sociability forms are in which the person gets involved, the person is a unique, incomparable being (Nietzsche would say), even though his proper individuality is a result of these relations.
Bibliographic References:
Alfred Gell, Art and agency, Clarendon Press, 1998.
Arthur C. Danto, Philosophizing art, University of California Press, 2001.
Émile Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, Martins Fontes, 2000.
Gottfried Wilhelm Leibniz, Monadologia, Rusconi, 1997.
Maurice Godelier, O enigma do dom, Civilização Brasileira, 2001.
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Carolina Paz: a artista e sua obra
por José Bento Ferreira
Se a categoria “obra de arte” deixou de ser lugar-comum e tornou-se ponto de discussão, o que dizer da palavra “obra” como conjunto de trabalhos realizados por uma determinada pessoa? O que unifica a trajetória de um artista? Qual é a relação entre a unidade da obra e a identidade pessoal dos indivíduos, sejam eles artistas ou não? Essas questões já foram respondidas de diversas maneiras, mas se complicam quando consideradas a partir de uma perspectiva global, para além da história da arte e suas referências filosóficas.
Nesse campo ampliado, as imagens produzidas pelos artistas aparecem como resultados de relações humanas e não como criações pura e simplesmente individuais, uma vez que a própria consciência de cada indivíduo pode não ser senão a “somatória de suas relações com outras pessoas,” como escreveu o antropólogo Alfred Gell ao tratar precisamente dessas questões. Haveria segundo o autor um “isomorfismo estrutural” entre a obra de um artista como um todo e a constelação de relações interpessoais que aponta unicamente para a sua pessoa. Assim como a “mônada” de Leibniz, cada indivíduo é único, mas “possui relações que expressam todos os outros.”
Não seria mera coincidência que a idéia do pensador metafísico tenha servido tanto ao filósofo Walter Benjamin, para ilustrar uma concepção de história, quanto ao antropólogo Maurice Godelier, para caracterizar as relações entre pessoas e coisas a partir do conceito de dom ou dádiva: “a parte é o Todo, o Todo está inteiro em cada uma de suas partes.” Em circunstâncias diversas, os dois autores empregaram a metafísica para reforçar posicionamentos materialistas a respeito da filosofia da história e da teoria social, respectivamente.
Essas idéias tornam mais compreensível aquilo que nós sabemos acerca das obras de arte, isto é, que as possibilidades expressivas são determinadas pelo contexto ao qual cada uma delas pertence e que esse contexto envolve tanto a subjetividade do artista quanto as relações intersubjetivas existentes ao redor dele. Por isso, uma obra de arte importante pode ser um objeto idêntico a uma coisa comum. A força do trabalho de arte depende de sua capacidade de exprimir o feixe de relações que envolve a mente e o mundo de um artista.
Compreende-se também a dificuldade de avaliar as obras de arte, uma vez que as circunstâncias se alteram e somente a continuidade da expressividade artística em diversas perspectivas assegura sua consistência, ainda que nunca de modo definitivo. Circunstâncias diferentes podem aumentar ou diminuir o interesse por determinadas obras ou momentos históricos.
A artista Carolina Paz afirma que seu trabalho passou por transformações significativas depois das residências artísticas realizadas ao longo de 2014 nos Estados Unidos e na Europa. Uma nova etapa pode potencializar os momentos anteriores. Nesses trabalhos mais recentes, ela retoma a prática da pintura sem abandonar o caráter reflexivo e conceitual das esculturas.
O “isomorfismo” entre trabalhos de arte e relações humanas ocorre antes e depois do período apontado como um momento decisivo. O período anterior contém uma série de trabalhos inspirados no costume intercultural de tomar café. Seria possível argumentar que Dois, Dobra, Contato e Todo o tempo nada têm a ver com o costume e exploram apenas as formas dos objetos, as tensões criadas pelos pesos, o equilíbrio instável do líquido, a cor e o modo como se formam manchas sobre o papel.
A interpretação que prima pela visualidade não está errada, mas é incompleta. Os trabalhos de Carolina Paz não são como os ready-mades de Marcel Duchamp, que, segundo o filósofo e crítico Arthur C. Danto, foram “selecionados precisamente pela falta de interesse estético.” As formas, tensões e justaposições das xícaras, líquidos e fios criam relações delicadas que removem provisoriamente os objetos do contexto prático. O caráter provisório dessa operação, porém, não é acidental.
O contexto original de onde vieram os objetos usados nos trabalhos é tão significativo quanto a beleza visual obtida com eles. O convite ao café é um código universalmente conhecido. Nos trabalhos de Carolina Paz, o café funciona como as imagens dos meios de comunicação de massa na arte pop, em contraponto às dimensões insondáveis exploradas pelos pintores expressionistas abstratos. Com marcas de xícaras e manchas de café sobre papel, a artista produz trabalhos que podem ser vistos como arte gráfica abstrata, mas cujas formas, em lugar de negar o convívio e a comunicabilidade, resultam deles.
O período de 2014 e 2015, por sua vez, caracteriza-se pelo uso de imagens preexistentes e pela retomada da pintura. A reunião desses dois aspectos não é fácil, uma vez que a cultura da arte moderna atribui ao trabalho do pintor a nobre qualidade da criação individual. Mas assim como havia demonstrado a possibilidade de criar formas livres a partir do convívio e da comunicabilidade, nesse novo movimento a artista redireciona a pintura para um universo intersubjetivo.
Intersubjetividade não é o contrário de subjetividade. A artista afirma que seleciona imagens a partir de diversas fontes para “criar seus próprios signos.” As relações entre as imagens produzem associações surrealistas, mas em lugar da vida onírica a sucessão remete a certas formas de sociabilidade. Plantas e animais, pintados sobre papel ou sobre objetos de madeira, aludem a símbolos mágicos, totêmicos e destacam-se do fundo pintado com o dourado dos ícones. Em certos trabalhos, as imagens se organizam parataticamente, como se compusessem uma linguagem de hieróglifos.
As imagens sobre madeira exercem a antiga função de proteger os recipientes que contêm objetos sagrados ou preciosos. Retratos de costas ressaltam o caráter íntimo daquilo que a imagem foi feita para conter. Por outro lado, quando as imagens se voltam para nós a partir do fundo decorativo, estão imersas em redes de intertextualidade, como as pinturas feitas a partir de ilustrações dos livros de Pierre Bourdieu. A artista trata das relações entre intimidade e loquacidade, entre a consciência individual e os contatos com os outros.
Aplica-se no caso de Carolina Paz a idéia de Alfred Gell de que a obra de um artista é um “objeto distribuído” estruturalmente semelhante à consciência interna do realizador que, por sua vez, configura-se a partir de circunstâncias reais (históricas, sociais etc). Em ambicioso estudo, o antropólogo associa às obras de arte a fala de um informante dakota, citada pelo sociólogo Émile Durkheim:
Tudo o que se move, detém-se aqui ou ali, num momento ou noutro. O pássaro que voa se detém num lugar para fazer o ninho, num outro para descansar de seu vôo. O homem que caminha, detém-se quando lhe agrada. Acontece o mesmo com a divindade. O Sol, tão brilhante e magnífico, é um lugar onde ela se deteve. As árvores e os animais são outros. O índio pensa nesses lugares e envia a eles suas preces, para que estas atinjam o local onde o deus estacionou e para que obtenham assistência e bênção.
O antropólogo Lévi-Strauss se admira com a semelhança entre esta descrição animista e a idéia de “duração” do filósofo Henri Bergson. Alfred Gell, por sua vez, comenta a “doutrina do presente vivo” do filósofo Edmund Husserl. A consciência do tempo enquanto “fluxo de consciência” não teria a forma de uma coisa, mas de movimento, duração. Cada obra de arte seria um ponto de parada capaz de exprimir esse fluxo devido ao rastro que remete aos momentos anteriores e ao direcionamento que aponta para o que está por vir.
Cada imagem escolhida e produzida por Carolina Paz é um desses pontos de parada, “um local onde o deus estacionou” em meio ao fluxo da consciência. Imagens são cristalizações, intervalos de descontinuidade. Nelas se torna visível uma determinada conjunção de fatores que ocorre num momento único, e que podemos chamar de “mônada” ou “constelação.” Nesta conjunção estão implicados tanto os trabalhos anteriores da artista quanto os próximos, tanto o seu estado de espírito quanto o espírito de época que ela é capaz de captar, tanto uma sensibilidade profunda quanto a abertura para o diálogo.
Esses fatores são acidentais na vida dos artistas. Podemos considerar a possibilidade de um bom artista indiferente aos sentimentos humanos ou ao que pensam as outras pessoas. Mas isso não impede que a qualidade de sua obra resida na capacidade de cada uma das partes (as obras) exprimir o todo e na capacidade da obra como um todo de exprimir o contexto em meio ao qual ela foi produzida, e isto ao longo do tempo.
No caso de Carolina Paz, sensibilidade e diálogo permitem captar e exprimir algo de significativo a respeito do conceito de obra de arte e da relação entre a obra e a consciência. A diversidade do conjunto de trabalhos compõe um só “objeto distribuído” (a obra, o trabalho) por mais heterogêneas que sejam as suas partes. Analogamente, por mais diversas que sejam as formas de sociabilidade em que a pessoa se envolve, trata-se de um indivíduo único, incomparável (diria Nietzsche), ainda que sua própria individualidade seja um resultado dessas relações.
Referências bibliográficas
Alfred Gell, Art and agency, Clarendon Press, 1998.
Arthur C. Danto, Philosophizing art, University of California Press, 2001.
Émile Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, Martins Fontes, 2000.
Gottfried Wilhelm Leibniz, Monadologia, Rusconi, 1997.
Maurice Godelier, O enigma do dom, Civilização Brasileira, 2001.
by Douglas de Freitas
(translated from Portuguese – original bellow)
In her production, Carolina Paz grants the status of art to objects and banal everyday life situations. Her procedure is to find, in the ordinary, elements of aesthetic power and potential for art. The artist constantly speaks of a “rip of time”, in dilating actions and objects creating a noise, displacing them and repositioning them in the world.
A great example for such procedure adopted by the artist is an untitled video from 2011 (page 49). In the video a table is set with a colorful and labored towel, over it is placed a saucer, a cup, that following, spoon by spoon, is being filled with sugar. The sequence is repeated for seventy-two long minutes until just like a fade out in a movie, the entire video is converted into white of sugar. By accumulation the image is deconstructed, cup, saucer and towel fade with the sugar. Just like in an hourglass, after all the time, everything is full and the sand ceases.
This daily routine ceremonial of the coffee permeates significant part of the recent production of the artist. More than cultural, historical and power relationships that the coffee carries or emblematizes, of which the artist is conscious, since her first training is in social sciences, the look here is another. Her work is to displace the trivial act of everyday routine of Western culture, seeing this action and the elements that surround her, such as cup, saucer and the liquid itself, with formality and refinement. The video ‘Amargo [Bitter]‘ (page 29) appears to be the synthesis of this process. Little is seen of the situation where the action is inserted, since the recording angle and the cut-scene all conceived by the artist present only an aerial view of a cup full of coffee, which is being savored slowly, what we do not know whether it is to the rhythm of a conversation or in a solitary reflection.
In ‘Contato [Contact]’, from 2013 (page 27), as in a series of objects created by the artist, tableware containing coffee are articulated by a delicate golden thread. In this work specifically, the line loops the wing of a cup, passes through two small nails and ties to the wing of a second cup. They face each other from afar and, face to face, present the coffee at the edge of spilling. So the artist creates the work tension and soothes the joint through a trial of strengths with supreme gentleness and silence.
‘Átimo [Trice]’ (page 31) and ‘Volta [Turn]’ (page 33), hyper- realistic oil paintings of coffee cups, are executed with sophisticated precision. Saved by ancient reconfigured frames, create an objectual relation to space. In this process, the object becomes two-dimensional in its pictorial representation, to stand again as an object in space, starting to act like reliquaries that instead of keeping relics remind these objects. For their configuration, these paintings are not exempt from a reading from the point of view of art history. Despite being developed from photographic images, they mention the style of the details of Baroque painting, and compositional elements of the pre-Renaissance painting. In ‘Volta’, for example, a spoon rises up from a cup perfectly centered. The scene is painted on a golden background that leads instantly to the divine sky of Byzantine art, which lives in constant struggle between the banality of the painted scene and the artist chosen cut (a coffee cup would never be the subject of a Byzantine painting or even Baroque, it would be at most a technical whim study of a painter). ‘Revelação [Revelation]’ (page 47), a little older, directly refers to the history of art, and more specifically to the history of painting. Unlike other works, in ‘Revelação’ there’s no noise between how to paint and painted object, it’s like a detail of draping of a large seventeenth-century painting had been removed and reassembled, and it is in this noise that work lies.
The study of classical technique of draping was also the starting point for the research that produced ‘Abraço [Hug]’ (page 15). In this work, the artist presses her own body weight and ties with a strong golden cord to a volume of 100 goose feather pillows. Pressed, they lose two thirds of their volume and gain density. Tied and laid on the ground they become a big body, heavy. The pillows little resemble the softness and lightness of the feathers, and seem to want to escape from the shackles, break the cord, which at the end of the volume falls to the ground as if in relief for the containment efforts it does. Here, once again, appears to the artist an important piece of data, which is give union from a great amount, reformat or remodel the already existing forms. Often an industrial element or action is repeated many times in the same work in order to give body, creating unity, emptying things from their information through the excess and then acquire another sense, another form.
In ‘Todo o Tempo [All the Time]’ (page 19) the artist stops presenting or representing the object to display only the result of an action. In short, is the remnant of the everyday life coffee, the brand we use to see in the furniture, or in the saucer, left by accident. In this work, in which the artist takes the banality of everyday life coffee in quantitative terms, and it extends between single being and being three hundred, three thousand or three million. Result of repetition of a procedure, the work has not run, and at the same time, the lack of control over the liquid, and to some extent on the procedure transforms each one of the stamped of the cup on a drawing. The consequence of this action, a circular mark on the paper, sometimes almost full, sometimes only suggested, ultimately raising the passage of time, is through the lens of the clock counting, or indicated by the phases of the moon and other cycles of nature. If time is a constant, and therefore can be flagged, the work reminds us that each moment has its own specifications, and that is all time is different.
On the whole, the work of Carolina Paz is a poetic look at the everyday life, their objects, their actions, their stories, about the slow and do notice the time passing unnoticed. Not that the artist has the ambition to stop time, it is fact that time does not stop, her attempt is to slow the pace of perception of things, is precisely to realize – as in the sugar video – where time slowly dies, thinking these actions, objects and materials in formal and symbolic conditions, and in a constant exercise of building new shapes from existing shapes, remodel and rebuild what is already done. Everything is configured through the search of a miracle of the little things, to see interest and beauty in the lost moments, in a lacerated portion of everyday life.
Douglas de Freitas
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Uma porção dilacerada do cotidiano: objetos, pinturas e vídeo-ações
Em sua produção, Carolina Paz concede status de arte a objetos e situações banais do cotidiano. Seu procedimento é encontrar, no corriqueiro, elementos de potência estética e potencial para a arte. A artista fala constantemente de um “esgarçar do tempo”, em dilatar ações e objetos criando um ruído, deslocando-os e reposicionando-os perante o mundo.
Um ótimo exemplo para tal procedimento adotado pela artista é o vídeo sem título de 2011 (página 49). Nele a mesa está posta, com uma toalha colorida e rebuscada, sobre ela é posicionado um pires, uma xícara que, na sequência, colherada a colherada, vai se enchendo de açúcar. O procedimento se repete por setenta e dois longos minutos, até que, como em um fade out de cinema, todo o vídeo se converte em um branco de açúcar. Por acúmulo a imagem se desconstrói, xícara, pires e toalha se apagam com o açúcar. Como em um relógio de areia, decorrido todo o tempo, tudo está cheio e a areia cessa.
Essa rotina cotidiana do cerimonial do café permeia parte significativa da produção recente da artista. Mais que as relações culturais, históricas e de poder que o café carrega ou simboliza, das quais a artista é consciente, uma vez que sua formação primeira é em ciências sociais, o olhar aqui é outro. Seu trabalho propõe deslocar o trivial ato da rotina cotidiana da cultura ocidental, encarando essa ação e os elementos que a circundam, como xícara, pires e o próprio líquido, com formalidade e requinte. O vídeo ‘Amargo’ (página 29) parece ser síntese deste processo. Pouco se vê da situação onde a ação está inserida, uma vez que o ângulo da gravação e o corte de cena idealizados pela artista apresentam apenas uma vista aérea de uma xícara cheia de café, que vai sendo degustada lentamente, não sabemos se ao ritmo de uma conversa, ou em uma reflexão solitária.
Em ‘Contato’, de 2013 (página 27), como em uma série de objetos criados pela artista, louças que contém café são articuladas por uma delicada linha dourada. Nesse trabalho especificamente, a linha laça a asa de uma xícara, passa por dois pequenos pregos e se amarra à asa de uma segunda xícara. Elas se encaram de longe e, frente a frente, apresentam o café no limite de derramar. Assim a artista cria a tensão do trabalho e apazigua o conjunto através de um jogo de forças, com estremo silêncio e delicadeza.
‘Átimo’ (página 31) e ‘Volta’ (página 33), pinturas a óleo hiper realistas de xícaras de café, são executadas com sofisticada precisão. Guardadas por antigas molduras reconfiguradas, criam uma relação objetual com o espaço. Nesse processo, objeto se torna bidimensional em sua representação pictórica, para se colocar novamente como objeto no espaço, passando a atuar como relicários que, ao invés de guardar relíquias, fazem lembrar esses objetos. Por sua configuração, essas pinturas não se isentam de uma leitura a partir do ponto de vista da história da arte. Apesar de serem desenvolvidas a partir de imagens fotográficas, citam o apuro dos detalhes da pintura barroca, e elementos compositivos da pintura pré-renascentista. Em ‘Volta’, por exemplo, uma colher ascende de uma xícara perfeitamente centralizada. A cena é pintada sobre um fundo dourado que remete instantaneamente ao céu divino da arte bizantina, que vive em embate constante com a banalidade da cena pintada, e do corte escolhido pela artista (uma xícara de café jamais seria o motivo de uma pintura bizantina ou mesmo barroca; seria, no máximo, um estudo de capricho técnico de um pintor). Revelação (página 47), um pouco mais antiga, remete diretamente à historia da arte, e mais precisamente à história da pintura. Ao contrário dos outros trabalhos, em ‘Revelação’ não há ruído entre a maneira de pintar e o motivo pintado; é como se um detalhe de planejamento de uma grande pintura do século XVII fosse removido e remontado, e é nesse ruído que reside o trabalho.
O estudo da técnica clássica de planejamento foi também o ponto de partida para a pesquisa que resultou em ‘Abraço’ (página 15). Na obra, a artista prensa com o peso do próprio corpo e amarra com um forte cordão dourado um volume de 100 travesseiros de plumas de ganso. Prensados, eles perdem dois terços do seu volume, e ganham densidade. Amarrados e apoiados no chão viram um grande corpo, pesado. Os travesseiros pouco lembram a maciez e a leveza das plumas, e parecem querer escapar das amarras, romper o cordão, que no final do volume cede ao chão como que em alívio pelo esforço de contenção que faz. Aqui aparece mais uma vez um dado importante para a artista, dar unidade a partir de grande quantidade, reformatar ou remodelar formas já existentes. Em alguns casos, um elemento industrial ou ação se repete inúmeras vezes em um mesmo trabalho, a fim de dar corpo, criar unidade esvaziando as coisas de suas informações através do excesso, para então ganhar outro sentido, outra forma.
Em ‘Todo o tempo’ (página 19) a artista deixa de apresentar, ou representar o objeto, para apresentar apenas o resultado de uma ação. Em síntese, é o resquício do café cotidiano, a marca que costumamos ver nos móveis, ou no pires, deixada por acidente. Nesse trabalho que a artista retoma a banalidade do café cotidiano em termos quantitativos, e ele se estende entre ser único e ser trezentos, três mil ou três milhões. Resultado da repetição de um procedimento, a obra não tem tiragem, e ao mesmo tempo, a falta de controle sobre o líquido, e até certo ponto sobre o procedimento, transforma cada uma das carimbadas da xícara em um desenho. A consequência dessa ação, uma marca circular sobre o papel, algumas vezes quase cheia, outras vezes apenas sugerida, acaba por suscitar a passagem do tempo, seja através da contagem objetiva do relógio, ou da indicada pelas fases da lua e demais ciclos da natureza. Se o tempo é uma constante, e por isso pode ser marcado, o trabalho faz lembrar que cada instante tem suas especificidades, e que todo o tempo é diferente.
No conjunto, o trabalho de Carolina Paz é um olhar poético sobre o cotidiano, seus objetos, suas ações, suas histórias, sobre o desacelerar e fazer notar o tempo que passa despercebido. Não que a artista tenha a ambição de parar o tempo, é fato dado que o tempo não para, sua tentativa é desacelerar o ritmo de percepção das coisas, é justamente fazer perceber – como no “vídeo do açúcar” – que lentamente o tempo morre, pensando essas ações, objetos e matérias sob condições formais e simbólicas, e em um exercício constante de construção de novas formas a partir de formas já existentes, de remodelar e reconstruir o que já está. Tudo se configura através da busca de um milagre das pequenas coisas, em ver interesse e beleza nos instantes perdidos, em uma porção dilacerada do cotidiano.
Douglas de Freitas
by Douglas de Freitas
(translated from Portuguese – original bellow)
In her production, Carolina Paz grants the status of art to everyday ordinary objects and situations. Her procedure is to find in the commonplace, elements of aesthetical and artistic potential. The artist speaks constantly of “fraying the time”, in dilating the actions and objects creating a noise, displacing them and repositioning them in the world.
The exhibit “sem. Os dois” (without. The two) has as a starting point the habit of drinking coffee. More than the cultural, historical and power relations that coffee holds or symbolizes, which the artist is conscious of – given that she is graduated in Social Sciences – the look here is another. Her work is in displacing the trivial act of western culture’s daily routine, facing that action and the elements that surround it, such as the cup, the saucer and the liquid itself, with formality and refinement. The video “Amargo” (Bitter) is a synthesis of this process. We see little of the situation where the action takes place, because the angle of the recording and the cut of the scene idealized by the artist present only an aerial view of a cup full of coffee, which is tasted slowly, maybe at the rhythm of a conversation, or with a lonely thinking.
“Átimo” (Trice) and “Volta” (Turn), hyperrealistic oil paintings of coffee cups, are performed with sophisticated accuracy, feature that represents the most recent paintings of the artist. Stashed by old reconfigured frames, they create an objectual relationship with the space. In that process, the object becomes two-dimensional in its pictorial representation, to be put again as an object in space, acting as reliquaries that, instead of keeping relics, remind us of those objects. Because of their configuration, these paintings can also be analyzed from an art history perspective. Despite being developed through photographic images, they recall the care for details from baroque painting and compositional elements of pre-Renaissence painting. In “Volta” (Turn), for instance, a spoon ascends from a perfectly centralized cup. The scene is painted over a golden background that reminds us instantly of the divine sky of byzantine art.
The highlight of the exhibit is “Dois” (Two). Located at the end of the room, the work manages here a better situation for its exhibit and it’s configured exactly as the artist thought about it in her studio. On the floor there is a saucer over which lays an empty tea cup. On its handle there is a delicate golden line attached, that crosses the roof to lace the other handle of the cup, this time of coffee, which, suspended in space, holds the coffee in the limit of overflowing. In this manner, the artist creates the tension of the work; the set appeases in a play of forces, where one vessel is in the eminence of emptying and, at the same time, filling another. A possible spilling that never happens.
“Frente Verso” (Recto Verso) marks with pressure on the paper the rim and the bottom of two elements, cup and saucer. It is noticeable from this evidence the absence of these elements dissecting their spaces. Rim and bottom, presented side by side through delicate lines of the limits of these objects, remind their potential of containing. Not only because they present circular forms, but also because they bring along the memory of the object that was contained inside them.
“Todo o tempo” (All the time) closes the exhibition. As in “Frente Verso” (Recto Verso), instead of presenting, or representing the object, it presents the result of an action. In sum, it is the vestige of everyday coffee, the mark that we usually see in furniture or in the saucer, left by accident. It is in this work that the artist resumes the commonness of everyday coffee in quantitative terms and it can be the last or the three hundredth, three thousandth or three millionths. Resulting from the repetition of a procedure, the work does not have issuing, and at the same time, the lack of control over the liquid and, to a certain point, over the procedure, transforms each one of the cup prints into a drawing. The result of this action, a round mark on the paper, sometimes almost full others only suggested, shows the passage of time, whether through the calculated counting of the watch, or indicated by the phases of the moon. If time is a constant, and because of that it can be counted, the work reminds us that every instant has its own particularities and that all time is different.
“sem. Os dois” (without. The two), name under which the artist gathers these works, resumes the operation made in her production, articulates words in an unusual way, which might be interpreted in a very simple manner, but doesn’t limit them, opening space for much more. Concisely, the exhibit proposes a slowing of time for its appreciation, and it can be experienced with the very act of drinking coffee. It can take some minutes, or some hours.
Douglas de Freitas | May 2013
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Em sua produção, Carolina Paz concede status de arte a objetos e situações banais do cotidiano. Seu procedimento é encontrar no corriqueiro, elementos de potência estética e potencial para a arte. A artista fala constantemente de um “esgarçar do tempo”, em dilatar ações e objetos criando um ruído, deslocando-os e reposicionando-os perante o mundo.
A exposição sem. Os dois tem como ponto de partida o hábito de tomar café. Mais que as relações culturais, históricas e de poder que o café carrega ou simboliza, das quais a artista é consciente – uma vez que sua formação primeira é em ciências sociais – o olhar aqui é outro. Seu trabalho está em deslocar o trivial ato da rotina cotidiana da cultura ocidental, encarando essa ação e os elementos que a circundam, como xícara, pires e o próprio líquido, com formalidade e requinte. O vídeo ‘amargo’ parece ser síntese deste processo. Pouco se vê da situação onde a ação está inserida, uma vez que o ângulo da gravação e o corte de cena idealizados pela artista apresentam apenas uma vista aérea de uma xícara cheia de café, que vai sendo degustada lentamente, não sabemos se ao ritmo de uma conversa, ou em uma reflexão solitária.
‘Átimo’ e ‘Volta’, pinturas a óleo hiper realista de xícaras de café, são executadas com sofisticada precisão, característica das pinturas mais recentes da artista. Guardadas por antigas molduras reconfiguradas, criam uma relação objetual com o espaço. Nesse processo, objeto se torna bidimensional em sua representação pictórica, para se colocar novamente como objeto no espaço, passando a atuar como relicários que, ao invés de guardar relíquias, fazem lembrar esses objetos. Por sua configuração, essas pinturas não se isentam de uma leitura a partir do ponto de vista da história da arte. Apesar de serem desenvolvidas a partir de imagens fotográficas, citam o apuro dos detalhes da pintura barroca, e elementos compositivos da pintura pré- renascentista. Em ‘Volta’, por exemplo, uma colher ascende de uma xícara perfeitamente centralizada. A cena é pintada sobre um fundo dourado que remete instantaneamente ao céu divino da arte bizantina.
O lugar de destaque da mostra é de ‘Dois’. Posicionado no fundo da sala, o trabalho consegue aqui a situação para sua melhor exibição, e se configura exatamente como a artista o pensou em seu ateliê. No chão está posicionado um pires sobre o qual descansa uma xícara de chá vazia. Em sua asa se amarra uma delicada linha dourada, que atravessa a estrutura do telhado para laçar a asa de outra xícara, desta vez de café que, suspensa no espaço, contém café no limite de transbordar. Assim a artista cria a tensão do trabalho, o conjunto se apazigua em um jogo de forças, mas está na iminência de esvaziar um recipiente e, ao mesmo tempo, encher o outro. Um possível derramar que nunca acontece.
‘Frente Verso’ marca com pressão no papel a boca e o fundo dos dois elementos, xícara e pires. Faz notar através desse indício a ausência desses elementos dissecando seus espaços. Boca e fundo, apresentadas lado a lado através da delicada linha dos limites destes objetos, lembram seu potencial de conter. Não apenas porque apresentam formas circulares, mas porque trazem em si a memória do objeto que estava contido entre elas.
‘Todo o tempo’ encerra a exposição. Como em ‘Frente Verso’ deixa de apresentar, ou representar o objeto, para apresentar apenas o resultado de uma ação. Em síntese, é o resquício do café cotidiano, a marca que costumamos ver nos móveis, ou no pires, deixada por acidente. É nesse trabalho que a artista retoma a banalidade do café cotidiano em termos quantitativos e ele se estende entre ser único e ser trezentos, três mil ou três milhões. Resultado da repetição de um procedimento, a obra não tem tiragem, e ao mesmo tempo, a falta de controle sobre o líquido, e até certo ponto sobre o procedimento, transforma cada uma das carimbadas da xícara em um desenho. A consequência dessa ação, uma marca circular sobre o papel, algumas vezes quase cheia, outras vezes apenas sugerida, acaba por suscitar a passagem do tempo, seja através da contagem objetiva do relógio, ou da indicada pelas fases da lua. Se o tempo é uma constante, e por isso pode ser marcado, o trabalho faz lembrar que cada instante tem suas especificidades, e que todo o tempo é diferente.
sem. Os dois, nome sob o qual a artista reúne estes trabalhos, sintetiza a operação realizada em sua produção, articula palavras de maneira não usual, que podem ser interpretadas de maneira muito simples, mas não as delimita, abrem espaço para muito mais. Concisa, a exposição propõe uma desaceleração do tempo para sua apreciação, e pode ser experienciada como o próprio ato de tomar café. Pode levar minutos, ou algumas horas.
Douglas de Freitas | Maio de 2013
by Mario Gioia
(translated from Portuguese – original bellow)
It’s a striking scene in the plot of Certified Copy. James (William Shimell) views the rooftops and towers of the small cluster of houses and buildings of Arezzo through the window of the hotel where he relives (or stages, but the doubt remains, decisively, and is a key factor to the open nature of Iranian Abbas Kiarostami’s movie) love story with the unnamed character played by Juliette Binoche. The opaque, earth-colored buildings are loaded with intimacy, resulting from a view from behind and synthesizing, on their worn surfaces, intense feelings, a memory of times past and even a clash of the camera of the filmmaker faced with the new cinematic territory – it is director’s debut shoot in Italy.
It is through such intricate use of artistically-silent windows, with no ostensible elements jumping out at us, that São Paulo artist Carolina Paz builds her solo exhibition Íntima Ação (Intimate Action), as part of the Zip’Up project at the Zipper gallery. Carolina uses painting, video, and drawing to lead the spectator to a slower-paced terrain, where minute details connected by precarious yet powerful links suggest unique experiences to a cadenced, serial rhythm dotted by a persistence verging on the obsessive.
The French theoretician Jacques Aumont, in The Endless Eye, addressing the painting of movies (and, in some instances, of video art), creates the concept of the window frame, essential to his analysis of such art forms. “After all, we are interested, and it’s about time, in what the image represents, through this imaginary world ‘which resembles our desires’. An image, it may not be superfluous to say after Lacan, is at once, as a pig in a poke, the visual and the imaginary. It is made so that we do not get lost in it. […] To make an image is, therefore, always to present the equivalent of a certain field – visual field and ghostly field, and both at the same time, indivisibly”1, the essayist states.
The windows carefully woven by Paz have varied supports and deal with, in common, the fragment, the splinter, the shards. At times she uses temporal dilation so characteristic of video art – one of her works lasts 72 minutes; Confinadas (Confined) (2011) runs for 22. However, also in just one minute the artist successfully condenses her proposition to seize the fleeting in the video of the series A Feia Que Não Sabe Que É Tão Feia (The Ugly Girl Who Doesn’t Know That She’s So Ugly) (2011). There, the inexpressive movement of the air on a banal, homely-patterned surface is what drives the scene, captured by a fixed, almost anti-cinematic camera – at least if seen as the current hegemonic practice of such language, based more on the narrative frenzy and visual pyrotechnics. “The picture window opens to the world: always in the same direction. Cinema multiplies the windows, crosses them, makes them into the place of mystery and in-visto, but also immobilizes them in overframe.”2
Paz skillfully situates her audiovisual pieces close to the narrative edges, testing the spectator’s rush-free capacity of adhesion. In the 22 minutes of Confinadas, the shots open up from a black surface that, ever so gradually, is seen filled with flowers of different hues, delicately sewn together by the artist. The 72 minutes of untitled video are even more exasperating: moving from an opening shot of a table covered with a commonplace, decorative orange tablecloth, with a teacup in the middle, to finally transmute into complete white, caused by the sugar that slowly invades the scenario, spoonful by spoonful. A snowy, somewhat lunar landscape, recreated over a dull piece of furniture from a repeated action.
In the slightly noisy assembly of Íntima Ação, the paulistana* highlights, within her pictorial work, the small scale and old fashioned post-production. Quite unrelated to a vintage fetishization, however there is an emphasis on the contemporary reinsertion of a priori anachronic elements, in the displacement and redefined meaning of objects from particular environments to be exhibited according to today’s artistic codes and in the notable value given to the remains and the impermanent. So, Silêncio (Silence) (2012) and Ascensão (Ascension) (2012) are placed side by side and portray parts of the artist’s body, but seen at a glance, capturing almost a frame of a routine act. Revelação (Revelation) (2011) also follows that reading. Pó (Powder) (2012) meanwhile refers to the classic theme of the vanitas and is placed on a gallery wall with rectangular windows providing frequent sunlight.
Íntima Ação, seen altogether, almost like an installation composed of distinct supports on fertile approximations, echoes the influence of Karen Kilimnik and Joseph Cornell, for example. Perhaps the instances that attest to Paz’s restless artwork are the two drawings on show from the series Relíquia (Relic) (2011-12), both in graphite on newspaper. Evidently the materiality of these two pieces will undergo intense transformations. The resulting deterioration of what was before presented as a more visible and watertight work of art only serves to highlight the importance of the idea, of the concept. The precise lines that portray parts of (recycled?) picture frames, whose forms are completed in the minds of those who see them now, within an exhibition space, afford the artist’s work a similar effect to, for instance, fireworks falling in the sky after brief bursts of light and color. Traces of ephemeral existence, also resemble the quick-moving, dimming light of fireflies. “To know fireflies, one must observe them in the present of their survival: one must seem them dance alive at midnight, even if that night is swept by some ferocious projectors. […] There is no living community without a phenomenology of the presentation in which each individual affronts – attracts or repels, desires or devours, sees or avoids – the other. The fireflies present themselves to their congeners by a kind of mimicking gesture which has the extraordinary trait of being just a strand of intermittent light, a signal, a gesture.”3 Thus, Carolina Paz opts for a brave transitoriness, a vital uncertainty, in an intriguing world of almost hysterical anxieties.
Mario Gioia
1. AUMONT, Jacques. O Olho Interminável [Cinema e Pintura]. São Paulo, Cosac Naify, 2007.
2. AUMONT, Jacques. Idem.
3. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte, UFMG, 2011.
* Translator’s Note: Paulistana = a native of the city of São Paulo
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É cena marcante na narrativa de Cópia Fiel. James (William Shimell) vislumbra os telhados e torres do pequeno casario e do conjunto de edificações de Arezzo, pelo enquadramento da janela do hotel onde revive (ou encena, mas a dúvida, decisiva, persiste e é chave no caráter aberto do filme do iraniano Abbas Kiarostami) história de amor com a personagem cujo nome não sabemos, interpretada por Juliette Binoche. As construções opacas, em cor de terra, carregam intimismo, resultam de uma visada por detrás e sintetizam, nas superfícies desgastadas, afetos intensos, memória histórica e até um embate de câmera do cineasta frente a um novo território fílmico _ é a estreia em rodagem do diretor na Itália.
E é intrincadamente empregando janelas de poética silenciosa, nada ostensiva e sem sobressaltos que a paulistana Carolina Paz constrói a individual Íntima Ação, dentro do projeto Zip´Up, na Zipper Galeria. A artista lança mão da pintura, do vídeo e do desenho para levar o observador a um terreno mais desacelerado, onde diminutos detalhes, ligados por elos de existência precária, mas, ao mesmo tempo, potentes, sugerem experiências singulares, de ritmo cadenciado, serial, pontuadas por uma persistência que beira o obsessivo.
O teórico francês Jacques Aumont, em O Olho Interminável, aproximando a pintura do cinema (e, em alguns momentos, da videoarte), cria o conceito de quadro-janela, essencial na sua análise de tais artes. “Enfim, interessemo-nos, já é tempo, pelo que representa a imagem, por esse mundo imaginário ‘que se afina com nossos desejos’. Uma imagem, talvez não seja supérfluo dizê-lo após Lacan, é, a um só tempo, gato por lebre, a ótica e o imaginário. Ela é feita para que nós não percamos nela. […] Fazer uma imagem é, portanto, sempre apresentar o equivalente de um certo campo _ campo visual e campo fantasmático, e os dois a um só tempo, indivisivelmente”1, destaca o ensaísta.
As janelas tecidas cuidadosamente por Paz têm suportes variados e tratam, em comum, do fragmento, do estilhaço, do caco. Por vezes ela utiliza a dilatação temporal tão característica da videoarte _ um dos trabalhos tem 72 minutos de duração; Confinadas (2011) transcorre por 22. Contudo, também em apenas um minuto a artista é bem-sucedida em condensar sua proposição de apreender o que é fugidio no vídeo da série A Feia Que Não Sabe Que É Tão Feia (2011). Nele, o inexpressivo movimento do ar sobre uma superfície de padronagem doméstica e banal é quem conduz a cena, captada por uma câmera fixa, quase um anticinema _ ao menos se visto como a atual prática hegemônica de tal linguagem, pautada mais pelo frenesi narrativo e pelas pirotecnias visuais. “A janela pictórica abre para o mundo: sempre no mesmo sentido. O cinema multiplica as janelas, as atravessa, faz delas o lugar do mistério e do in-visto, mas também as imobiliza em sobrequadro.”2
Paz habilmente situa suas peças audiovisuais perto das bordas narrativas, testando a capacidade de adesão desprovida de pressa do espectador. Nos 22 minutos de Confinadas, os planos se desdobram a partir de uma superfície em negro que, bem pouco a pouco, se vê preenchida por flores de diversas matizes, delicadamente costuradas pela artista. Os 72 minutos de vídeo sem título são ainda mais exasperantes: vão de uma inicial mesa encapada por uma toalha laranja de motivos decorativos triviais, com uma xícara ao centro, para, por fim, transmutar-se em uma branquidão total, em razão do açúcar que invade o cenário, lentamente, de colherada em colherada. Uma paisagem nevada, algo lunar, recriada sobre um mobiliário corriqueiro, feita a partir de uma ação repetitiva.
Na montagem pouco ruidosa de Íntima Ação, a paulistana coloca em relevo, dentro de sua produção pictórica, a pequena escala e a finalização de tom passadista. Nada a ver com uma fetichização vintage, porém com uma ênfase na reinserção contemporânea de elementos a priori anacrônicos, no deslocamento e na ressignificação de objetos originários de ambientes particulares para serem exibidos segundo os códigos da arte de hoje e na marcante valorização do vestígio e do impermanente. Então, Silêncio (2012) e Ascensão (2012) são colocadas lado a lado e retratam partes do corpo da artista, mas sob um olhar de relance, que capta quase que um frame de ato rotineiro. Revelação (2011) também segue tal leitura. Já Pó (2012) remete à clássica temática do vanitas e é posta em parede da sala expositiva que ostenta janelas retangulares, a receber frequente luz.
Íntima Ação, vista em conjunto quase como uma instalação constituída de distintos suportes em aproximações fecundas, ecoa influências de Karen Kilimnik e Joseph Cornell, por exemplo. Talvez o momento que ateste a inquieta poética de Paz sejam os dois desenhos da série Relíquia (2011-12) expostos, ambos grafite sobre papel jornal. Sabe-se que a materialidade das duas peças vai passar por intensas transformações. A decorrente fragilização do que antes se impõe como uma obra de arte mais estanque e visível só destaca a importância da ideia, do conceito. Os traços precisos que retratam trechos de molduras (reutilizadas?), cujas formas apenas são completadas na mente de quem as assiste agora, dentro de um espaço expositivo, fazem com que a obra da paulistana tenha um efeito similar de, por exemplo, fogos de artifício já em queda, depois dos rompantes de segundos de luz e cor. Rastros de existência efêmera, também se assemelham à luz corrida, desfeita e indicial dos vaga-lumes. “Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. […] Não há comunidade viva sem uma fenomenologia da apresentação em que cada indivíduo afronta _ atrai ou repele, deseja ou devora, olha ou evita _ o outro. Os vaga-lumes se apresentam a seus congêneres por uma espécie de gesto mímico que tem a particularidade extraordinária de ser apenas um traço de luz intermitente, um sinal, um gesto”3. Assim, Carolina Paz opta por uma corajosa transitoriedade, uma vital incerteza, em meio a um mundo novidadeiro e de ansiedades quase histéricas.
Mario Gioia
1. AUMONT, Jacques. O Olho Interminável [Cinema e Pintura]. São Paulo, Cosac Naify, 2007.
2. AUMONT, Jacques. Idem.
3. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte, UFMG, 2011.
By Rubens Pontes
(translated from Portuguese – original bellow)
In reference to the digital images adopted by the consumer society, its palette is reduced to a direct chromatic pulse with intense and luminous colors.
Consciously placed in contrast within the pictorial plane, the elements making up the images, where practically in their majority, relate to the human figure, and are subordinated to that pulse and luminosity. In some cases, the artist fails to situate the figure within a place in possible actions or narratives and adopts a more direct speech, a 3×4 frame of the human figure, making reference to photographs of documents in small stressful moments of its position and gaze. Note that the artist already directs the scene, where, in many cases, it is the photographer herself, being aware of the entire process. An also evident process is the technical way of working the surface of the painting, where we perceive the chromatic space, the gesture in the construction of the images and an instantaneity in the placement of these figures. In a perception of snapshots, the entire work directly presents to us the relationships contained in its surface, where we perceive each part, each space, the process and due to an optical question, the color stands out slightly and asks us to look at the next “snapshot”.
The palette changes and the color induce us to savor it, not only it, but also new imaginative clippings.
The image and its representative values have had great weight, being of paramount importance in the conduct of civilizations throughout history, and in media times, such as today, the image itself has become one of the main consumption icons.
The tour of the artist by artists like Cindy Sherman, Gerhard Richter, Hooper and in hyper-realistic proposals, direct possibilities of understanding about her work.
Between photography and painting, Carolina Paz works within the image, transiting in its capabilities and actively placing us at its delight. There is no stress between the proposals as in previous works, where the parts highlighted made up the whole of the work. The artist does not act on the stress created within and in the intervals of an image to another or even a new series or work; there is only one game, only one passion, the image, and what it provides to us. Photography and painting are complemented by a kind of slide; contents of photography impregnated in painting and of pictorial qualities in her photographic images.
Being the image a great value, her thought is clear within those imaginative systems and in all its process, where she edited them, by manipulating them and transposing them in her choices. And this process is impregnated throughout her production and in the current painting works that present not in a direct way, but rather in previous proposals, but slowly, and which will be announcing themselves to our eyes. They ask us for a longer time of appreciation and we do not have the clear certainty of these procedures. Her technical approaches are not clear but rather veiled, where definitely the artist enters the territory of painting, not only in the use of the chosen material, but also in a more elastic approach to her technical treatment. With more knowledge in the choice of color and its values, the pictorial surface is equivalent to the force of compositional clippings, which within her process make up an amalgam, there being no hierarchy between these elements. Therefore, painting is placed for us to savor it.
Le garçons, a series of paintings made in 2009, entitled Antoine, Guillaume, Louis, Marc, Yves Jacques and Jean, is produced in oil and has pleasure in its making, making use of glazing, tonal passages, a velvety treatment and a control luminosity, which is contained in their interior. Tactile relations are raised by looking at them when we savor their surface.
The artist again directs the scene chooses and manipulates the images that will be painted and these relationships are almost like a film.
There are desires in these proposals, and they activate the need for appreciation contained in the imaginative consumption icons. Increasingly in her images there is a need for this consumption, not in the simply anthropophagic sense, but also in the relations of desire, summoning us to appreciation, to voyeurism, savoring the object observed, stimulating our senses. This savoring is pasted with desire and lets us remember that her images are representations of human figures, body fragments placed sensually in the pictorial field, and in the way they are presented, some almost in an objective, carnal, way, like a piece of still life, asking to be consumed. We do not see the face nor the body in their entirety, we are seduced by an androgynous image that appears in the clippings and frameworks, encouraging gender and power values, relations between the private and the public, appreciation and consumption, and everything that is connected to it gets mixed up.
The desire to take yet a little peak through the edges, through the cracks, in the clippings worked by the artist from her first choice. Whose eyes is it that of the artist or the observer, looking at the images created and takes hold, wishing them?
Rubens Pontes
Artist, poet and professor
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Les Garçons, 2009
Em referencia às imagens digitais adotadas pela sociedade de consumo sua paleta é reduzida a uma pulsação cromática direta com cores intensas e luminosas.
Cientemente colocadas em contraste dentro do plano pictórico, os elementos que constituem as imagens, onde praticamente em sua maioria se relaciona à figura humana, subordinam-se a essa pulsação e luminosidade. Em alguns casos, a artista deixa de situar a figura dentro de um lugar em possíveis ações ou narrativas e adota um discurso mais direto, um enquadramento 3×4 da figura humana, fazendo menção às fotografias de documentos em pequenos instantes de tensão de seu posicionamento e olhar. Nota-se que a artista já dirige a cena, onde em muitos casos ela é a própria fotógrafa, tomando ciência de todo o processo. Processo também evidente na maneira técnica de trabalhar a superfície da pintura, onde percebemos o espaço cromático, o gesto na construção das imagens e uma instantaneidade no posicionamento destas figuras. Em uma percepção de instantâneos, todo o trabalho nos apresenta diretamente as relações contidas em sua superfície, onde percebemos cada parte, cada espaço, o processo e por uma questão óptica, a cor ligeiramente se sobressai e nos pede para olharmos o próximo “instantâneo”.
A paleta muda e a cor nos induz a saboreá-la, não só a ela, mas também a novos recortes imagéticos.
A imagem e seus valores representativos tiveram grande peso, sendo de suma importância na condução das civilizações durante a história, e em tempos midiáticos, como o de hoje, a própria imagem tornou-se um dos principais ícones de consumo.
O passeio da artista por artistas como Cindy Sherman, Gerhard Richter, Hooper e em propostas hiper-realistas, direcionam possibilidades de entendimento sobre seu trabalho.
Entre a fotografia e a pintura, Carolina Paz trabalha dentro da imagem, transitando em suas potencialidades e nos colocando ativamente ao seu deleite. Não há tensão entre as propostas como em trabalhos anteriores, onde as partes evidenciadas compunham o todo do trabalho. A artista não atua nas tensões criadas dentro e nos intervalos de uma imagem à outra ou mesmo de uma nova série ou trabalho, há um só jogo, uma só paixão, a imagem, e o que ela nos proporciona. A fotografia e a pintura complementam-se numa espécie de deslizamento; conteúdos da fotografia impreguinados na pintura e de qualidades pictóricas em suas imagens fotográficas.
Sendo a imagem um grande valor, fica claro seu pensamento dentro desses sistemas imagéticos e em todo o seu processo, onde ela as edita, manipulando-as e transpondo-as em suas escolhas. E esse processo está impreguinado em toda sua produção e nos trabalhos atuais de pintura se apresentam não de uma maneira direta, como em propostas anteriores, mas lentamente, e aos nossos olhos vão se anunciando. Pedem-nos um tempo maior de apreciação e não temos a clara certeza desses procedimentos. Suas abordagens técnicas não se encontram de uma maneira evidente e sim velada, onde definitivamente a artista entra no território da pintura, não só na utilização do material escolhido, mas em uma abordagem mais elástica de seu tratamento técnico. Com mais ciência na escolha da cor e seus valores, a superfície pictórica se equivale à força dos recortes compositivos, que dentro de seu processo formam um amálgama, não havendo hierarquia entre esses elementos. Assim a pintura está posta para saboreá-la.
Le garçons, série de pinturas efetuadas em 2009, intituladas Antoine, Guillaume, Louis, Marc, Yves, Jacques e Jean, são produzidas a óleo e apresentam o prazer em sua feitura, utilizando velaturas, passagens tonais, um tratamento aveludado e um controle de luminosidade que se encontra contido em seu interior. Relações táteis são suscitadas ao olhá-las, ao saborear sua superfície.
A artista novamente dirige a cena, escolhe e manipula as imagens que serão pintadas e essas relações são quase fílmicas.
Há desejos nessas propostas, e eles ativam a necessidade de apreciação contida em ícones imagéticos de consumo. Cada vez mais em suas imagens há uma necessidade desse consumo, não no sentido unicamente antropofágico, mas nas relações de desejo, nos convocando à apreciação, ao voyeurismo, a saborear o observado, estimulando-nos os sentidos. Este saborear está colado com o desejo e lembremo-nos que suas imagens são representações de figuras humanas, fragmentos do corpo colocados sensualmente no campo pictórico, e na maneira como são apresentados, alguns de forma quase objetual, carnal, como uma espécie de natureza morta, pedem para serem consumidos. Não vemos o rosto e nem o corpo em sua totalidade, somos seduzidos por uma imagem andrógena que surge nos recortes e enquadramentos, estimulando valores de gênero e poder, relações entre o privado e o público, apreciação e consumo, e tudo o que esteja ligado a ela se confundem.
Querer espiar um pouco mais pelas bordas, pelas frestas, nos recortes trabalhados pela artista desde sua primeira escolha. O olho de quem é, o da artista ou do observador, que olha as imagens criadas e se apodera, desejando-as?
Rubens Pontes
Artista plástico, poeta e professor
2009